sexta-feira, 25 de julho de 2008

A sombra (completo)

Um tombo surdo. Bumbo. Do outro lado.

A unha encarniçada parou: cavoucava o chão. Os pelos eriçaram dum medo. Depois, os dedos imundos do pé voltaram a se contrair como a horas, movimento de alicate, a catar o palito de fósforos imundo do chão idem. Onde estaria ele agora que o fio de sol, que entra por misericórdia pela falha da parede, entardecera? Continuava, entretanto, como se ainda visse. Agarrou alguma coisa: os dedos gordos, pretos, arrastaram, levando às mãos o objeto delgado. Um riso fraco de contentamento. Afastou a poeira num sopro e o perdeu novamente. Dedos imundos do pé direito foram buscá-lo desta vez, que o esquerdo tinha nós de cãibra. Se houve rancor da perda, quedou em outro lugar, na cara, não. As mãos roliças não sustentavam mais, os dedos inchados não sentiam, as veias obstruídas pelo aperto das algemas. Assim, quando lhe punha o palito entre as bolas intumescidas, não lhe agarrava prontamente, era como dá-lo a um bicho de cascos. Era bicho já. Os braços negros, duas ampulhetas: grossos no antebraço, finos nos pulsos e a grossura novamente. Quando o fio de sol amanhecia, erguia-os antes no limite das correntes, tentar adivinhar que tons traziam seus indicadores.

Um dia: “Roxos... e os... os seus?”

Nada em resposta, mas falou. Falou. Arfara diversas vezes até balir a cor e a cor cortara as ataduras que lhe puseram na boca antes de ir à catacumba, era como se lhe tivessem costurado os beiços e a cor – bendita cor - rompido a linha imunda, pêlo de animal sebento. “Roxos” libertou num esforço, mas não à toa: ouvira da cela contígua. Assim fora: um balido, depois uma sombra a remexer-se como diante de uma vela acesa, uma silhueta mais escura que a escuridão. Foi como se existisse sol por um instante discriminar o outro: sim, alguém estava ali e o fizera pergunta.

“Seus dedos... – arfando, arfando - que cor trazem... s... seus... dedos?”

Mas que longa longa frase! Que longo longo discurso identificara. Jamais poderia crer que seria capaz de entender idioma agora que os grilhões lhe tinham comido as peles dos pulsos e tornozelos, e que o silêncio, também faminto, comera palavras, todas elas, haviam calado há muito. Revia-se: a palavra era um espelho diante dele, única coisa que lhe diagnosticava não era bicho, pois que entendia e falava. Entendia e falava. Ergueria sua condição da imundície se o corpo obeso não podia: arfou, arfou, sacudiu-se não sem dor, ilinhou-se nos grilhões, desesperado com a constatação tão óbvia, especial: era preciso responder.

“H....” - guturais.

“Rr...rro...” – um canivete decepando a cabeça das costuras mofadas.

“Ro..xosss” – finalmente.

Estrondou-lhe nos ouvidos, era um leão rugindo ao meio-dia, rompendo a sesta da savana. Era uma macumba brandindo num terreiro, sacudindo das tumbas os velhos negros: os tambores lhe tocaram nos pulmões e a multidão lhe subiu pela traquéia, batucou as cordas vocais e explodiu pela boca.

“Roxos dedos tenho!” - Bendito seja Oxum lhe desdobrara a língua.

E era tão bela sua voz. Larga, grossa, como a do avô, o velho negro da carapinha prateada e das mãos de marceneiro, olorosas de carvalho. Trazia os dedos firmes naquele movimento preciso de poda e investida que era o entalhe, um enleio, uma dança com a mulher amada. Corria a canhota muito segura no centro do cabo, descia leve, raspando as “flerpas” do rosto, e relaxava o punho no manejo da ponta, cavando as rugas do olho. “O trivial, meu filho, se faz com o punho apertado, mas o segredo de usar a ponta está na falta da rudeza.” Era santeiro, o velho, mas rezava a reza dos negros, e assim lho catequizara às avessas, não sem santidade: São Jorge era Ogum ou Oxossi; Maria, Yemanjá. Era analfabeto e sábio. O mais sábio deles, pois que era ignorante. No início daquelas escuridões da prisão, passado o grito, o esperneio, a revolta, a reivindicação... ao lhe cair o silêncio da palavra, recordou o que aprendera: bem como no entalhe do carvalho, a rudeza afiada do grilhão exigia a falta dela. E com completa mansidão entalhou seus dias, cavoucados no chão imundo do calabouço. Por certo, não saberia dizer quando a lucidez lhe disse adeus, o que se fez em qualquer daqueles dias iguais. Não demorou, entretanto: logo a solidão das coisas foi sua inquilina e, então, não soube mais. Simplesmente, assim naturalmente, alcançou o estado do não saber: a solidão faminta lhe comeu as palavras e com elas o som das palavras e com ele as lembranças e com elas a sensação de ser gente. Era um fardo, saco de açúcar, a contrair-se vez em quando. Por esses dias, começou a fugir do fio de sol. Perceber-se para quê.

Mas quando a fala retumbou do outro lado da parede... a vida foi limpar-lhe a pasta esbranquiçada dos olhos: havia outro e se havia, não era só. E era. Existia, pois que outro de sua espécie lhe garantia isso (na verdade, pouco importava que fosse mesmo da mesma espécie). E quando a palavra brandiu novamente, fez vir de mãos dadas seus antigos moradores: cor, som, lembrança. Voltou a dar nomes e o delgado voltou a ser fósforo. Voltou a erguer-se feito planta a procura do fio de sol. E lembrou que nunca fora bom santeiro, uns olhos tão tortos, detalhes tão mal cavados, mas que fizera santos no chão imundo, cavoucando vincos de rosto na areia; que teve os pulsos apertados nos dias triviais e, sobretudo, fora profissional no manejar da ponta da afiada solidão. Agora nada dela mais.

“Os tenho... negros... negros hoje. Tenho... medo.” – numa tarde.

“Meus anelares... continuam arr... arroxeadoss...”

Era mulher. Ah, quanta dor não lhe causava voz tão bonita apresentar-se assim sufocada. Esteve certo de que lhe tinham prendido pelo pescoço, que devia estar fino qual o fósforo. Triste. Agora sentia dor pelo outro e era feliz por isso, pois o fez ainda mais humano e arfou um tanto mais para saber o nome dela. Recebeu silêncio. “Amanhã, amanhã.” – pensou, amanhã perguntaria. E, de novo, contou os dias. Fizeram-se novamente as horas.

Mas antes que o fio de sol amanhecesse, um tombo surdo. Bumbo. Do outro lado. E estranhamente a sombra alongada, vertical, fez-se horizonte. A sombra era prostrada agora.

“S..seu.. nom... nome?”

“Sss...seu nome? Diga?”

Entendeu depois que a solidão eterna virara inquilina Dela. Sim, esse era seu nome: Dela, ele pôs, antes de entristecer-se de sequer poder achegar-se para fechar-lhe os olhos. E quando voltou a catar o delgado no chão imundo não sentiu mais a vergonha familiar que tinha de ter dedos inchados, que não agarravam com firmeza a madeira; não se perguntou se os beiços que sopravam o palito pareciam com aqueles tão bem feitos, concentrados, do avô, ao expulsar a serragem dos colos das Virgens. Depois que a indiferença lhe inaugurou a nova condição, veio a velha moradora reatar suas costuras seculares dos lábios com pêlos sebentos de animal. E a solidão acabou-lhe a palavra. Os outros inquilinos sequer disseram adeus: foram-se no sono eterno da sombra Dela, ali deitada.

Ilustração II


Vadios I. Parte de um painel. 2008.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

A sombra

Um tombo surdo. Bumbo. Do outro lado.

A unha encarniçada parou: cavoucava o chão. Os pelos eriçaram dum medo. Depois, os dedos imundos do pé voltaram a se contrair como a horas, movimento de alicate, a catar o palito de fósforos imundo do chão idem. Onde estaria ele agora que o fio de sol, que entra por misericórdia pela falha da parede, entardecera? Continuava, entretanto, como se ainda visse. Agarrou alguma coisa: os dedos gordos, pretos, arrastaram, levando às mãos o objeto delgado. Um riso fraco de contentamento. Afastou a poeira num sopro e o perdeu novamente. Dedos imundos do pé direito foram buscá-lo desta vez, que o esquerdo tem nós de cãibra. Se houve rancor da perda... retesou-se em algum lugar, na cara não. As mãos roliças não sustentavam mais, os dedos inchados não sentiam; as veias obstruídas pelo aperto das algemas. Assim, quando lhe punha o palito entre as bolas intumescidas, não lhe agarrava prontamente, era como dá-lo a um bicho de cascos. Era bicho já. Os braços negros, duas ampulhetas: grossos no antebraço, finos nos pulsos e a grossura novamente. Quando o fio de sol amanhecia, erguia-os no limite das correntes, tentar adivinhar que tons traziam seus indicadores.

Um dia: “Roxos... e os... os seus?”

Nada em resposta, mas falou. Falou. Arfara diversas vezes até balir a cor e a cor cortara as ataduras que lhe puseram na boca antes de ir à catacumba, era como se lhe tivessem costurado os beiços e a cor – bendita cor - rompido a linha imunda, pêlo de animal sebento. “Roxos”, libertou num esforço, mas não à toa: ouvira da cela contígua. Assim fora: o balido, depois a sombra. Uma silhueta mais tarde, mais escura que a escuridão. Foi como se existisse sol por um instante, discriminou o outro: sim, alguém estava ali e o fizera pergunta.

“Seus dedos... – arfando, arfando - que cor trazem... s... seus... dedos?”

Mas que longa longa frase! Que longo longo discurso identificara. Jamais poderia crer que seria capaz ainda de entender idioma agora que os grilhões lhe tinham comido as peles dos pulsos e tornozelos e que o silêncio, também faminto, comera palavras, todas elas, calaram há muito. Agora revia-se: a palavra era um espelho diante dele, única coisa que lhe diagnosticava não era bicho, pois que entendia e falava. Entendia e falava. Ergueria sua condição da imundície se o corpo obeso não podia: arfou, arfou, remexeu-se dolorosamente, ilinhou-se nos grilhões, desesperado com a constatação tão óbvia, especial: era preciso responder.

“H....” - guturais.

“Rr...rro...” – um canivete decepando a cabeça das costuras mofadas.

“Ro..xosss” – finalmente.

Estrondou-lhe nos ouvidos, era um leão rugindo ao meio-dia, rompendo a sesta da savana. Era uma macumba brandindo num terreiro, sacudindo das tumbas os velhos negros: os tambores lhe tocaram nos pulmões e a multidão lhe subiu pela traquéia, batucou as cordas vocais e explodiu pela boca.

“Roxos dedos tenho!” - Bendito seja Oxum lhe desdobrara a língua.

Continua......

Começando sessões de Ilustração


"Clowns". Painel. De 2005.

terça-feira, 15 de julho de 2008

O Milagreiro da (I)inocência

De cima, bastava arquear-se um tanto, cuidando em não cair, e esquivar-se levemente para a direita que lá estavam elas a girar periodicamente como hastes de um carrossel. 1, 2, 3, 4, 5... milhares. Tactactac. Não deviam ser mais que duas dezenas de pequenos fiozinhos de aço, mas ali, girando presos à roda, se duplicavam, triplicavam, mudando a paisagem: a terra encarnada, vista de onde se pedalava, fragmentava-se na brincadeira da roda, parecendo filme de slide, tela-per-tela. Tactactac. Ficava bonito se pusesse umas fitinhas de São Francisco de Canindé. Ficava. A bicicleta era azul celeste, aro circular. E, vixe, que gostava demais daquele modelo, nunca o possuíra – dizia – nunca possuíra nenhum e, depois de velho, lá estava com ela pra cima e pra baixo. Mais que impossível!

- Mais que impossível! – disse em voz alta pra si mesmo, o homem da feira prestando atenção.

Disse para si, para o feito, para a possibilidade iminente de ser menino outra vez, vitória miúda. E caçoou intimamente do dono da barraca quando quis saber o que havia dito.

- Nada não, moço, é comigo.

Era com ele. Transformação íntima. Dele. Um retorno aos tempos de uma infância que não tivera. E, ave, que as pessoas não falam com elas mesmas? Devia ser por isso que muitas não sabiam falar com as outras. Rijeza é falta de prática e ele praticava, de veras, consigo. Deixou o porco de paga e foi-se embora na danada da magrela, tocando a sineta, trim-trim, sim, por que não é que até sineta tinha?

- Pois não é que até sinete tem, Maria?

- Volte.

- E os pneu? Tem uns aro que se boto umas fitina de São Franscisco, pense aí..

- Volte. Volte e vá buscar o porco! – um brado acordando o sono das crianças, leve sempre leve, o sono de fome. Irrequietas, remexiam-se nos berços, procurando jeito de o peso nos olhos vir antes da bendita dor fina. Quando apertava, vinha a mão de mãe dar-lhes cada um, um terço. Apertavam as contas, intercedendo pelo peso nos olhos. Acabavam mordiscando as miçangas até cochilar.

- O porco! – catando os rosários na gaveta da cômoda.

Não dava ouvidos. E não era indiferença, não era teatro. Seu Firmino nem sabia o que lá era teatro. Estava mais pra encantamento. Daquele que não se permite que o outro estrague, que mal permite o outro, a não que ele seja o objeto de desejo. Quando se sonha, o que se quer não é só não acordar, mas, sobretudo, não ser acordado por outro. E o que não dizer do sonho de olhos abertos! O sono acordado também indeseja ser desperto e, certas vezes, luta-se por isso até inconscientemente. Lá estava Seu Firmino, resistência de São Sebastião, as flechas nas costelas.

- Mas se eu acho dois dedo de graxa, aí fica boa. Acaba os rangido, tais vendo, Maria? – os olhos amiudados não prestavam atenção no indicador que se movia diante deles, um tanto dissimulado, apontando as rodas.

- Quede o porco? Como é que foi isso?!

Era ainda madrugada quando saíra de casa. A terra tão em geral encarnada ia fria, vestida de griz, feito a lua de São Jorge, ainda intocada pelos raios dum sol que nasceria dali uns 30 minutos. Silêncio do sertão. Sabe qual? Silêncio de infância, que quase nunca tem silêncio - sempre gritaria, felicidade de aniversário –, mas quando existe, é feito esse do sertão: silêncio fresco, revigorante, de mata ainda orvalhada, de ressonar de gentes que ainda dormem, de chão que ainda dorme, de casas de taipa que ainda dormem, do sono de São José, que pendendo na vara de lírios e na primeira parede da casa, dorme ainda. Só um ônibus longe, muito longe interrompia, e, naquela manhã, também a chinela de Seu Firmino mais quatro patinhas desajeitadas de tão roliças. Ele e o porco quebrando o silêncio de infância. Mas davam à cena um som bonito - sim, o som fazendo poesia para os olhos. E naquela caminhada, o frescor e a liberdade que lhe trazia aquele filtro azulado de manhã não parida soou-lhe no pé do ouvido como um ente celeste em forma de vento, deitando-lhe a idéia de que todo aquele filme mais rápido é que devia ser bonito mesmo. Botou-se a correr. Era bonito, sim, muito mais.

- Bonito, muito mais! – haja liberdade.

- Oooooinc! - haja guincho do coitado do porco que nada de sentir liberdade nenhuma naquela carreira desembestada.

Slow Motion novamente.

O dedo grande de São Sol tocou o chão com firmeza, espalhando-se gordo levemente para os lados como quando Seu Firmino assinava documentos. O astro colocava ali, lentamente, sua digital. E o filtro azul se confundia, revelando o matiz dum dia claro.

Cedo chegou à feira.

Perdeu-se no meio de tanta gente, mais que o porco, suspeitava. As tendas rotas se erguiam feito dominós de osso, antigos e imundos, dando-lhe a certeza de que empurrar uma só delas era pôr fim a todas. Nas estreitas avenidas, carneiros, galinhas, cachorros famintos e porcos disputavam com as gentes de longas pernas as vias de mão dupla, tripla, sabe-se lá. E dez reais, fruta podre, cacarecos, ovos, leite, vinte conto, roupa, calçado, tapioca, feijão verde, forró, coisas do Paraguai, e, mais na frente, solitária e brilhante – assim a vira – bicicleta. As mãos enrugadas se cruzaram atrás das costas lentamente, se agarraram firmes, contendo a surpresa nada boa para os negócios, e o pescoço arqueou-se para a frente, reparando fixo, o olhar inquisidor. Os pés compassavam também inquisidores em torno da mercadoria.

- Troca o porco nessa bicha? – o olho na magrela.

- Quanto pesa o bicho?

- Mais de cem quilo, co’certeza. – ainda lá.

Negócio fechado. As mãos se desataram permitindo a tal alegria infantil, saltando num brado rouco, ainda tímido e desaprendido, de quem não teve muitas felicidades pra treinar.

- Mais que impossível!

A mulher fechou-se, não só a cara. A filha caçula, entretanto, nada contrafeita, saltou do berço, largando as continhas, ir ver que era aquilo que lá fora, recostado ao parapeito, brilhava feito pérola ao sol das dez. Uma auréola se formava em torno da carcaça azul céu.

- Pérola. Que acha?

- Mas é um lindo nome mesmo. Pois vai ser Pérola. E quando você tiver canelas maiores, ensino a andar. – a pequena rompendo a tal da inaceitação do outro na coisa do encantamento. Permaneceu.

Estava selado ali compromisso mais importante que. Feito Pérola brilhavam aqueles dois olhos, ambos infantes, mesma idade, feito Cosme e Damião. A mulatinha tocou-lhe o rosto e, como vara de condão, fez em novo, sumiu com as rugas tão marcadas da cara fogueada, tanto sóis. Não era mais um sexagenário ali, diante daquela que nem encaravam como pessoa ainda, tão miúda e mal vivida nos seus talvez seis anos. Tinha seis, como ela. Não, talvez um tanto mais, um irmão mais velho, um Anjo da Guarda, que lhe transmitiria conhecimento milenar: sentir o vento passar pelos cabelos mais rápido do que quando se corre, sentir a vida passando rápido e matizando as cores bonitas do sertão que, quem caminha, só vê separadas, pensando serem todas iguais, da família do amarelo-queimado-fome-seca. Tudo mentira. As rodas de carrossel misturam as cores em aquarela.

- Mentira, as rodas de carrossel misturam as cores... – agarrado naquela mão miúda.

- Se vai ficar com essa bicha, arrume de comer, por que do pouco que tem nessa casa não lhe dou direito. – de dentro do casebre.

Pôs as mãos no gidão e foi-se retirando, um cachorro magro e velho, rabo entre as pernas, a pedir comida casa em casa.

- Posso ir com o senhor? – as mãozinhas morenas no pedal.

Olhou Maria com seus olhos de cachorro. A mulher nada disse e os cachinhos da menina saltaram na garupa. A outra balbuciou alguma coisa com a santa na parede da trempe.

(...)

- Uma, duas ,três, quatro.... está contano?

A bicicleta parada rente à margem do açude, a cela já rachada da quentura do meio dia. Os dois, professor e aluna, pés na água.

- Não mexa os pés, fique paradinha. Conte as onda, uma, duas... Tais vendo? Sabe contar?

Sacudiram-se os cachinhos afirmativamente. Os dedinhos interessados como que tocavam as marolinhas da água barrenta.

- Sabe Jesus?

Cachinhos afirmativos.

- João evangelista disse que Jesus Cristo, Nosso Senhor, andou nas água. E salvou São Pedro andando nas água, entende? Mas agora atenção: me disse Zé Sarraceno... – em tom de segredo, segredíssimo.

E disse que Zé Sarraceno lhe disse que o jeito que o Cristo havia conseguido o prodígio era outro, não que ele não fosse filho de Deus, só que era esperto: contara as ondas, uma a uma e fez das marolinhas como que uma ponte, por onde andou tranquilamente. Bicicleta passaria nela?

- Foi de maré em maré, tais vendo?

- E foi?

- Na verdade! Agora escute: se ele salva um home andando nas água, na bicicleta, que anda mais rápido, você não acha que eu salvo eu, você, a mulher, mais dois filho e os cachorro, acha não? – o riso infante no canto da boca, dissimulado riso de seis anos - Deus vai se impressionar tanto, que vai mandar é muito mais porco.

Trim-trim...

- Vá contano! – para a margem – muito mais porco – para si – muito mais porco – os olhos no céu.

Trim-trim...

(...)

Inocência, na beirada do açude, esperou-o até ir-se pôr em casa, junto com o sol. À noite, esnobou com o dorso da mãozinha o feijão de janta: que o pai fora buscar comida, dizia. Que ia aparecer à porta com mais porco. Confiante (I)inocência.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Compulsão

Fartamente rolaram-lhe grossas pela tez cândida as águas que garantira a si mesma, dias atrás, jamais viriam.
Vieram.
Abundantes já, lavaram-lhe o rosto tal qual fardos perolados a despencar-lhe pelo corpo, manchar-lhe a veste de casimira bordada à custa da mãe. Não tardava chegar a hora de correr as mãos pelo rosto bruscamente, enxugar o pranto, apagar vestígios. Contudo, e se, ao passar a destra sobre a face, sentisse embebida sua pele ainda no cheiro Dele? Que faria? Teve medo, que, por certo, choraria as águas que lhe restavam, secaria suas grotas, levá-las-ia e a si – quem sabe – a bancarrota, digladiando-se corpo e alma assim ligeiro e brusco a portas trancadas: olhos fechados, punhos cerrados. E o pensamento Nele e só Nele. nele? Nele. Amaldiçoaria; xingaria cheiro tão libidinoso e carnal que lhe invadia as narinas, incitando-lhe o desejo de sorver-lhe novamente. Tudo calada, calada sempre. Como quando se resignava às extravagâncias Dele. Talvez um grito só, uníssono, gutural, escapasse-lhe da boca antes de cair-se exausta, estéreo de pranto, de sentido, de tudo e de nada.
Minutos-horas de silêncio.
Lentamente, o corpo se apieda, aquieta e condescende com as imagens difíceis de conter. Deixou-lhe vir o primeiro beijo, no sítio com os amigos; as juras de amor eterno – assim clichê - encorajadas pelo rum; a noitada, cantoria, bebedeira, em que se avivaram de ambos os instintos, consumados num ato rápido e negligente, tal qual um avexo, um mijo, um cuspe. Um tanto quanto diferente da entrega plena que ela negava, mas sonhara um dia. “Bobagem, coisa pequena”, refutava. Deixou-lhe vir ainda a noite em que o beijo molhado e o vômito ao carpete da sala imprimiram-lhe o mesmo odor. Cheiro forte, bolorento, embriaguez de vodka. Ateve-se a balbucios desconexos ao ombro dela. Rapsódias, sentimentos. Pôs fora não só álcool e guarnições. E como, ainda sim, podia conter no corpo, na camisa suada, na nuca (!), cheiro bom de recomeço?
Vomitara, dissera bobagens, quebrara a louça de porcelana à cozinha, mas, num abraço, tornou tão banal o que causara. Como?
Ainda àquela noite, pensou depois, cigarro à mão – Ele, desacordado, mal coberto pelo lençol – o que diriam de ela ter admitido que Ele a tomasse, ainda que completamente bêbado. Sentiu-se suja, e lançou mão do orgulho para contornar os sentidos, pondo no rosto um semblante de poder. Dona da situação.
“Eu quis. Eu que quis”, tragou.
E ergueu-se, não tinha sono. Ainda despida, recostou-se à soleira da porta, contemplou-o debruçado; e pôs-se a pensar – persistindo com os devaneios de poder – que não Ele lhe possuía, mas ela o fazia de objeto, garantindo-o a cada posse. Num sorriso, concluiu que de nada valia enumerar as camas e corpos perlustrados por Ele ao longo daquela noite, se só ali, na cama dela corpo dela, residia seu ninho, onde caia desacordado, baixava a guarda, fazia-se menino.
Abriu os olhos. Tomou em mãos os retratos da escrivaninha. Poucos. Momentos unicamente. Lançou-os num assomo sobre a cama e viu a casa. Sentiu-se lenta, vista turva, cabeça pesada, como depois de um porre de vinho ou trago de baseado. No lar, persistiam as posições dos móveis, jarros, cortinas – tudo tal qual Ele deixara – e o silencio-prurido que engolia o apartamento, o omitia da vida e a arrastava junto. Sentir-se pouco pra tamanho espaço fez-lhe recordar o quanto queria um filho. “me faria companhia”, comentou com ele certa vez. Que comprasse um cachorro, aconselhou-a.
Amargou-se. Não queria um bicho, queria um filho, fruto de suas entranhas, em quem pudesse descobrir-se nos traços, senão na personalidade; que a surpreendesse com seus trejeitos... por quem dar a vida, chorar, sofrer parecesse justo. E acordou – erguendo-se do canto – que um primogênito deveria constituir-se seu mais novo projeto, que só assim vingaria dignamente o sumiço Dele. E fez questão que fosse homem, enquanto se despia. Tomaria um banho, poria o longo incrustado com pedrarias e faria um filho àquela noite.
Isolaria quaisquer características do pai – de quem, aliás, não lhe importava sequer o nome -, ignoraria. Por dádiva, alimentaria o filho de amores paterno e materno depurantes, fulgurantes e tamanhos que supririam dele as necessidades todas, possibilitando-lhe viver para ela e unicamente para ela. Transformá-lo-ia numa sua imagem masculina e guardaria e aguardaria por toda a vida as águas que lhe viessem reabastecer as grotas para secá-las às decepções que aquele nascido de suas vísceras lhe traria, que por ele choraria dignamente.
Tomou a bolsa, atou as sandálias, viu o apartamento outra vez. E, girando o trinco, enfezou-se com o silêncio-prurido, ao qual dispersou num balido estridente, deixou bem claro:
“Farei um filho sem você!”
E acendeu um cigarro.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Destinatário: Tanta Coisa...

Como é difícil riscar você.

terça-feira, 8 de julho de 2008

As profissionais de Walquiria

Trajava chita quando caminhava repetidamente pela esquina. Chita, fita no cabelo, bolsinha de palha e, certas vezes, até livros. Madalena professorinha. Lá pelas dez, chegava Rochelly, enquanto Suelen arribava para os lados da Beira mar no Corola verde-oliva. Todo santo (?) dia o mesmo Corola. Era magra, Rochelly, loira tingida, peitos fartos, curtas saias, mas já era velha. E sabia disso. Chorava no motel desdentado de janelas quando os homens saiam. A bendita impressão que lhe disseram, sentiria, quando chegasse a hora. Não sustentava mais do jeito que o homem quisesse e já se cansara de fingir como antes: com tanta graça gemia, Rochelly, que os homens não podiam não acreditar. Nunca achou que por falta de gozo apanharia, como as outras. “Bicho nojento, caprichoso” resmungavam segurando o rosto em brasa “se quisesse que eu sentisse, pagasse mais!” e outras tantas davam razão, enquanto Rochelly zombava num canto. Naquela noite, apanhou. E ainda que tivesse tentado fingir que fazia parte do lance, que fora por prazer, o italiano meteu-lhe a mão na cara por insatisfação. A puta não deu no couro (donde já se viu). “Caprichoso”, consolou-se sozinha, ainda arreganhada a contar os vinténs. Deu-lhe menos o gingo, e – fez questão – em reais.

No ponto, a negra Maria Clara abordava mais um. Essa criara confusão quando resolveu assentar-se por aquelas bandas. Achegou-se com uma conversa de que tivessem respeito com ela porque não era daquelas “sem-vergonhiças”, estava ali pra ler a sorte dos clientes, seu esoterismo, sim, era honesto, coisa de família, aprendera com a mãe. Não demorou muito pras moças de dona Walquiria subirem as escadas do puteiro às pressas, contar pra ela que a “nega macumbeira entrava no carro dos cliente, e depois, na outra rua, dava, sim!”. Angélica, nova e afogueada, se adiantou no meio da gritaria: “Madrinha, ela com essas vissagem de lê mão, faz boquete de graça, dentro do carro mermo e oferece o resto! Rouba o ponto da senhora sem dá um tostão!”, a danada até tinha razão, mas levou um tapa entre os beiços por ter falado nome feio. Em casa de Walquiria não se falam vulgaridades.

Na mesma noite, a cafetina rija, bem maquiada, dos lábios encarnados, metida em jérsei roxo-desejo, chamou Maria Clara pras conversas. Dava roupa, dava quarto, dava um cantinho da calçada, mas deixasse de desonestidade. E era um carinho pro lado da negra, pois que não tinha nenhuma dessa linhagem na casa. Os clientes mais chegados já reclamavam da falta duma baiana legítima desde a morte de Nazinha. “Tá pouco. Se sinhá soubesse quem sou eu com esses pestes, oferecia muito mais que isso”, um riso safado de dentes muito brancos. Walquiria desenrolou num segundo: deitou-se àquela noite com ela e no outro dia, fez-lhe quase sócia. E a rapariga que achasse ruim, podia ir-se embora, que falta não ia fazer.

Mas a preciosidade não era Maria. Era Madalena. Trajava chita quando caminhava repetidamente pela porta, agora, ao menos, não tão nervosa como antigamente. Gostava era da praça, caminhava por entre os bancos, enquanto as outras se empunhavam à esquina, ainda que logo Wal lhe chamasse para dentro. Madalena não competia, pois que nunca se aceitou naquela circunstância. Walquiria revoltou-se de início, mas depois, fez pouco caso. Importante era o dinheiro no fim da função, e isso sempre chegava. Enquanto as outras eram chapinha, escova, peruca, tintura, Madalena era cabelos cacheados, longos, naturais, laço de fita; as outras, saias curtas, peitos e regos à mostra, Madalena manguinhas, babados, estava mais para uma sertanejinha do Juazeiro pronta para o batizado. E de lá viera mesmo, mas para estudar. Formou-se na capital e não conseguiu sustentar-se. Foi por fome que se deu de comer e a primeira vez gozou um gozo dolorido, repetindo alto: sô professora, sô professora; eu não sou disso, o senhor me respeite pelo amor de Deus, que eu sou é professora!”. O maldito aquentou-se com a gritaria, tapou-lhe a boca, virou-lhe de bruços e lhe calou de choro. Sete dias sem falar. Nem gemido, nem resfolego, nada. E não virava de bruços de jeito maneira. Walquiria rejeitou-lhe, que não tinha serventia mulher daquele jeito: não queria vestir as roupas das outras, não fazia os gostos do cliente, era cheia de pudores. Mandou procurar o Pastor Matias, que por ali andava vez em quando, talvez tivesse pra ela lugar mais bem parecido. “O pirão de Wal é quente e insosso, minha filha, gente fresca não prova dele, não”. Mas deu-se uns dias e haja os homens aparecerem atrás da professorinha. Só queriam se fosse ela, veja só, lembrava a deles, do “culegial”.

Depois de nove dias de aperreio, a cafetina mandou chamar Madalena: estava mais magra já. Logicamente, Wal contou-lhe outra história, vestiu-se de azul-solidária e disse que não podia mais dormir pensando na precisão da bichinha. Tadinha de Madá. Mas a espilicute não caiu. Disse certeira que já sabia dos reclames da clientela e que, se Wal quisesse, tinha de ser do jeito da puta. Foi assim que a professorinha ficou de bibelô: era de chita, de fita no cabelo, dentro da casa, nada de rodar de carro, e com ela, meu filho, só papai-mamãe.

Duas e meia em ponto no relógio comprido da outra praça, não longe dali. O Corola estaciona desembarcando Suelen, mas, dessa vez, Walquiria esperava na porta, vestindo preto-sangue.

“Cadê dinheiro?”

A sulista aperreou-se, tirou das calças umas notas encarnadas.

“Quero é dinheiro, Suelen, não é dez reais, não!”

“Mas é dinheiro, madrinha, me deixe entrar, que estou cansada.”

“Se dez reais fosse dinheiro, excomungada...” agarrada nas patacas da branquela “ ...cê tava trabalhando em supermercado, tava num caixa, não tava aqui vendendo os fundos, não!”

“Hoje não foi bom, madrinha, amanhã melhora...”

“Melhora, sim. ” Afastou-se lentamente deixando a moça à vontade.

Nova noite. O centro secava e os policiais a cavalo se deslocavam sutilmente para a outra borda da praça, fingindo não ver o início da função. A lâmpada do poste era feito um estroboscópio. Trocar pra quê? Se ilumina o que se deve dar a conhecer, o que já está lá e já é de conhecimento pra quem interessa, melhor que fique escondido. Assim é mais fácil pra quem quer fingir que não existe. Na frente do puteiro, nunca houve luz nos postes menores: os policiais as retiravam, quando não, os clientes pediam.

Naquela noite, quando o Corola verde-oliva pousou rente à sarjeta, quem lhe esperava era Walquiria, em marron amargo. Mandou baixar o vidro.

“Você tem mulher?”

“Não achei que isso interessasse.”

“Acho bom responder. Quantas putas você tem?”

Silêncio. Poste a piscar. Depois, “Deito com quem eu quiser.”

“ Perdeu a conta? E esposa, quantas cê tem?”

“Uma só.”

“Uma só. Vai sustentar Suelen? Vai deixar sua esposa pra sustentar Suelen? Vai levar pra casa, apresentar pra sua família? Então deixe de apaixonar a menina pra pagar menos. Não sei onde mais cê fode, mas aqui é tabelado. E ela não tá aqui hoje, não. Botei pra ir atrás de quem tenha, chega de dar pra liso.”

Pelas quatro, Suelen voltou exausta. Em beira de praia, não há decência. Trazia os bolsos recheados, as pernas e o abdômen doloridos, um baseado no canto da boca. O puteiro um puro silêncio. Estranho.

“Ele veio?”

“E foi-se embora.” Walquiria trancou-se com ela no quarto. Tinha companhia.

“Quê que eles tão fazendo aqui?”

Wal puxou-lhe o dinheiro dos bolsos e contou com dificuldade, pediu ao polícia que fizesse menos barulho “impossível se concentrar assim, Rogério! Homens, pelo amor de Deus, que zoada!” e que não estragassem o rosto da moça. 30 minutos, uma hora, hora e meia.

“Chegô! Ela trabalha amanhã!”

Saíram, levando cada um, um tanto.

“Mulher minha não se apega. Se der de graça lá fora, vai dar aqui dentro, e pra quem eu quiser. Amanhã ce vai pra praia de novo, hoje foi bem melhor. Se lave e ajeite esse quarto.”

Vestia verde-oliva.

Parto

Chão de terra roxa. Barro prensado. O sol àquela hora da tarde cozia a taipa, encarnando paredes e assoalho. Mirava o chão, só, e não sabia se o que calava era a boca, o lábio ressequido, a vista ou os ouvidos. Era a frustração lhe talhando cego, surdo e mudo. Frêmito, correu as veias outra vez o sangue septuagenário e outra e outra, sempre mais rápido dada a fissura que lhe afogueava. As velhas pupilas - escusas num areal de rugas amarelas, embebidas na baba esbranquiçada da catarata, recortadas por finos estiletes sanguíneos - salgaram. Era limão, pimenta e sal nos olhos, turvos, queimados que estavam. Entocou na algibeira do casaco o lenço retorcido – a mão cálida, trêmula.

A mesma destra arou os fios grisalhos da carapinha com as pontas dos dedos, lentamente, rasgava caminhos. Pareceu que punha a cabeça velha a pensar. Mirava o chão, só, o barro prensado largava-se fácil e em tempo de vento emporcalhava a casa. Comia-se poeira. Era terra deitada nas redes, na cristaleira, no fogareiro, na penteadeira... uma aporrinhação. O velho não tinha modos de erguer a vista. Era a vergonha petrificando a direção do olho.

Recostou o chapéu gasto ao ventre e caducou com os pelos já acinzentados da camurça. O suor empapava-lhe a camisa rota, encardida. Trouxe-lhe a caneca d’água uma senhora decerto também setuagenária. Levou ao cômodo, mas não lhe deu em mãos: deixou que a filha caçula o fizesse.

Recusou num esquivo, um gemido bruto - gutural, sem retirar os olhos do chão. Morreria de calor e sede, que a vergonha já o findara por dentro. Era ali só carcaça. Estalou o fundo retorcido da caneta na mesa de tábua. A moça não tinha modos para insistir, oferecera a água num estender de braço, mal o olhando nos olhos – por certo, também a vergonha lhe fazia estrábica. Concentrou-se também no barro prensado.

Com ela - nova, mestiça, cabelos pelo meio das costas, ancas largas e peitos fartos -, um rapazote de, quem sabe, mesma idade. Franzino, amarelo, ostentando um bigode ralo pelo meio da cara – pelada, sem ruga nem marcas. Num silêncio fitavam o velho e ele, o chão.

“Busque a bassora, mulher, que o barro já se desfez em poeira.” Arrematou lento, grave o septuagenário à senhora de idade. Baixo e funestamente. Seco tal qual o dia.

Afobou-se o rapazote. Catou o suor na testa amarela com a palma da mão, balançou a cabeça e bufando duas ou três vezes – num ritual semelhante ao de quem acabara de entornar meio litro de aguardente –, disse quase cuspindo.

“A gente casa, se o senhor quiser.”

No meio da cara a cusparada do moleque. No meio da fronte enrugada, em fogo, do velho. Dilatou as narinas num sopro bruto e deixou o suor empapar-lhe a face. Esconder-se entre as rugas. A moça assistia, decorava-lhe a velha fisionomia austera posto que não lhe tirava os olhos agora. Punha-se aterrorizada. Pálida como nunca fora.

Tocando o chapéu para um lado, contemplou a moça lentamente. Olhou-a, olhou-a, calado sempre, o rosto redondo, delicado, os cabelos longos dum “negro quase azul” - assim dizia quando a tomava no colo – o corpo farto de carnes, e agora o ventre evidente, saliente já no vestido bege rendado. Não agüentou olhar-lhe muito. E a voz grossa, embargada, ecoou num ódio desmedido. Numa sentença grave, calculada, palavra ante palavra.

“A filha é minha, eu que tive.”

E por um momento, tamanho era naquele ego cansado o sentimento de posse pela cria, que se sentiu todo ventres, úteros, óvulos e tudo o mais necessário para tê-la parido ele mesmo. Recostou novamente o chapéu ao ventre, mas agarrava mesmo as entranhas com as mãos, tentativa chão de retê-la (a caçula) ao lugar de origem. Reviu as manhãs em fogo, sol das onze, em que saia a cortar cana, derrubar cocos, arrancar matos para as beberagens da menina – fraca que era das pernas desde a infância. Também as vezes em que lhe tomara em febre nos braços lembrara, as ladainhas gaguejadas ao punho da rede, velas acesas ao Anjo da Guarda, a São Cosme e Damião. Que lhe livrasse a filha mulher, que lhe livrasse a filha mulher.

“Meu pai, nóis quer casar...”.

“Cale a boca, Sucena!” O balido estridente, trêmulo, soara da cozinha. A luz das velas já acesas no oratório, ladeado à trempe, vacilava nas paredes, desenhava a silhueta da setuagenária nelas. Era noite, mas a lua não aparecera, sequer o vento frio. Só um bafo soturno varria a casa.

“A filha é minha, eu que tive!” Ressoou socando a taipa, como a passagem de um carro de bois.

E no calor da discussão em círculos, prolixa, alargada a mais não poder, o moço não pôde. Levantou-se – branco – da tênue cadeira de palhas e indicando o ventre da moça, bradou uma tréplica vacilante.

“Mas o filho é meu!”

Abortaram-lhe, sentiu o velho. Arrancaram-lhe a dentes a gerada em suas entranhas. Tiraram-lhe do peito a cria ainda débil. A noite bufou casa adentro e pôde ver o septuagenário recuar as espáduas arqueadas como num soco de carabina, erguer súbito os olhos, arregalá-los, e queimar com eles o infeliz.

Lançou a canhota grossa num espalmo sobre a mesa, o golpe reverberou seco, brusco, furioso, a caneca quedada empoçou o barro, corando-lhe em tom de vinho. Trincou os dentes, mastigou os beiços. Ninguém lhe desmamaria rês tão ansiada, onça nenhuma lhe roubaria a cria, quem dirá um perdigueiro, um vira-lata. O franzino o encarava prontamente, punhos cerrados pareciam preparar-se para a luta iminente, achou-o patético naqueles modos. Calá-lo-ia.

“A filha é minha, eu que tive. E o que tem nela, vira meu também.”

É sempre o tempo

À Débora Medeiros, Revisora, Sempre.

À Dhenis Maciel, pelo gérmen de romantismo,

subjetividade e encanto, colhido cotidianamente.

É sempre o tempo que nos põe afastados, sempre ele. Quando nos falávamos noite passada, não demorou até que as horas nos engolissem. A meia-noite se apresentou e nos fechou a cortina no meio dos olhos.

Serenou lá fora. Não choveu, entretanto. Lamberam as janelas os pingos d’água, suaram-lhes somente, e a hora que reparte a noite em madrugada soou no relógio centenário da sala. Despedi-me com os olhos em sereno, tardava já.

Revê-lo tinha sabor de novo dia, de manhã na praia, de afago, borboletas no estômago e mãos em neve. Restava-me decorar-lhe o rosto com o indicador, que era retê-lo eternamente, desenhá-lo na memória em carvão e giz, adormecer na doce certeza de lembrá-lo ainda detalhe per detalhe ao despontar do dia; seus olhos, a procura com afeto; seu colo, minha guarda, meu escudo, minha lança. E era tê-lo em meus braços assim perfeitamente para quebrantarem-nos as doze horas.

O vento rebentou pela porta, sacudiu os cercados e as hastes resfriadas do maracujá. Era inverno. Vento, leva-o, vento! Frio, contem-no, frio! Toma alguma providência com esse tempo de ninguém!

Esteve à porta pontualmente: nove. Vinha num casaco escuro de brim, os fios se entrelaçavam cordialmente tal qual apertos de mão; atado numa gravata púrpura, distinta; todo boina e luvas de carpete, nas cores do casaco. Estava belo e sereno feito a lua clara, insistente entre as brumas de inverno; sorria faceira e ele, encantador. Pedi-lhe que entrasse, revi tristemente o centenário e desmoronei-me por dentro, por dentro sempre.

Conversamos naturalmente. Nunca era-nos a mesma coisa, perguntar-lhe o cotidiano me vinha tão mergulhado em novidades que não me continha, de felicidade nos olhos cristalizava. Eram um romance indiano de guerreiros, deuses e nativas - lindas mulheres de cabelos negros e olhos idem -, temperado à canela, cravos e pimenta as aventuras marítimas que ele se dispunha a narrar e as estórias que se me despertavam. E apesar de não haver ligação alguma entre ele e as Índias, gostava de pensar que as laranjas que me trazia do porto exalavam qual romãs.

Era pescador, mas não cheirava a salmão. Pela manhã, exalava sol de cedinho, areia de praia, mar e céu azuis. Ao cair da tarde, banhado e recomposto, cheirava a lírios, a mel de flor silvestre; grave, acetinada e envolvente que é fragrância masculina, um tanto azeda, um tanto doce. Transformava o colo dele em acalanto e me convidava a deitar. Pedido irrecusável o perfume de um homem.

Falei-lhe, neste dia, de meus devaneios indianos e recriei a pedido o cenário de lagos, várzeas, elefantes, cores e olores de incenso em que se avivavam nossas aventuras. Saris, turbantes e tapetes, de repente, nos transportavam da sala mórbida para o ostentoso Taj Mahal muçulmano, construído para a amada, pelo amado. E ele me tomava as mãos.

- Farei um para ti, queres? Verás! Melhor que o do Sultão! – e nos ríamos.

Nos casaríamos segundo os preceitos hinduístas, ao som de mantras, oferecendo juntos no templo uma chama, símbolo de amor e gratidão aos deuses. E me ofertava, as mãos em concha, uma flor de lótus imaginária, não sem seus risos gostosos de encantamento. E naquela gargalhada meu sol. Euforia rebentava-me por dentro, numa certeza de estar onde sempre quisera.

E do sorriso fez-se o pranto, assim de repente. Era riso e, num assomo, soluço morno, contido. Agradeceu-me veemente as carícias que lhe eram cada uma das palavras daquele dia, os desejos de nos sumirmos completamente da monotonice. Deitou-me um olhar pastoso, apertou-me contra o peito num desespero infante e falou do vento. Uma outra vez.

Línguas infantes - gélidas, pálidas - sussurravam à entrada, afogueavam o capim verde e me inclinavam as cercas pros lados no norte. Da terra ao mar, sopravam; da terra firme ao oceano, lambiam; da casa - casa minha, berço meu - ao litoral errante, tangiam. Buscavam-lhe à porteira.

- É tempo já. – olhou-me com olhos de “vou-me”.

E, por um momento, apertou-me o peito a certeza de que não mais veria aqueles olhos, nem os de “eis-me” tampouco os de adeus.

Doze horas.

Maresia e Cerração

Ele sacudia para o mar os cocos secos a se estenderem pela praia, catava os canudos esguios. Tombavam naquelas canelas finas as marolas brancas, saltadas pela areia de molho. Olhou o horizonte. Era sempre linda a reta azul de Mundaú, diferente das outras – podia crer, mesmo nunca de lá tendo saído. Devia ser. Se duvidar, aquele horizonte fino dos outros não era nem tão reto assim, nem tão azul, nem tão mesclado de verde, nem tão daquele jeito bonito e aprumado, feito traço de régua comprida. O mar de lá só podia ser melhor que o de outro lugar. Qualquer outro.

- E o que tem do outro lado? Do lado de lá, donde a gente não vê, depois da reta azul? – perguntou certa vez a ela, numa curiosidade infante, um tanto nervosa, um tanto encabulada.

- Há mais. Outras praias, enseadas, areais. Continua. – ela branca, pálida grão-de-areia, os tornozelos para fora dos babados do longo bege, barras molhadas das pequenas ondas a se entranharem nas teias da seda fina: nada propícia a litorais.

- Tem o resto, então? – e apertava as pupilas, buscando o fim.

- Exato, o... restô, como vocês dizem – e o buscava, a ele mesmo, nas pupilas castanho-verdes de menino, dele moreno: por que, assim de repente, tão num acaso, assomo, viu-o moço? Menino-homem?

- E como tu sabe, se vê igual a mim?

Quis consertar a frase. Pensou melhor. Olhou-a curioso:

- Vem cá, tu vê igual?

Riu-se a mocinha. Era alva como nunca reparara: os cabelos negros lhe caíam em longos cachos, mais tufos de algas escuras que fios. E corriam ao longo da face um nariz muito afilado, uma boca muito delineada, encarnada; uns olhos tão azuis... Corriam mesmo que era tudo em traços finos muito finos. O rosto não se fazia de rupturas, cavas, Alpes; antes, se o corresse com o indicador, sentir-se-ia nada mais que a continuidade de uma pele macia, clara e homogênea. Uma harmonia: assim gostava ele de pensar (o menino, agora repentino moço àqueles olhos azuis).

Por isso mesmo achou até sensato que Nosso Senhor permitisse galega de porte tão destoante ver diferente. E quis saber.

- Bobo. – num riso alvo de dentes idem – Mergulha comigo?

- Eu não. Enjoei de mar hoje. Posso só ?

- Pois vê.

Mergulhou. E a chamaria: Iara! (se não a conhecesse). E podia jurar que ela acenar-lhe-ia, atendendo ao chamado. Que era a mãe das águas seguramente quem se erguia ali, brilhando aos raios saturados da tardinha, reluzindo feito cortina de contas cristalinas, diante dos seus olhos de moço. Apaixonou-se. E podia dizer: por Iara mãe-das-águas, seguramente.

O vestido bege colado ao corpo dava ares de um nu de deusa, que o menino nunca se havia permitido enxergar. O moço viu. E a desejou naquele instante. Abraçando as canelas, sentado do jeito que estava na areia fina, projetou-se tomando-a nos braços, cheirando aqueles cabelos salgados... e meneava a cabeça procurando um odor imaginário.

Ela brincava na água, rebolando miçangas para o ar; e ele, com a imagem da moça, brincava de fantasiá-la dançarina numa noite gris de lua alta, daquelas incrustadas de faróis piscantes; fantasiá-la contando estrelas, deitada ao seu lado. E mais, muito mais – ousou delirar: as mãos dadas consigo.

- Que tem? – apertando os cabelos-algas gotejantes.

- Eu? Nada! - despertado da noite onírica.

Envermelheceu.

- Preciso ir. É tarde. Mon père espera já. – a fala sempre lenta, arrastada.

Concordou, pondo-se cavalheiro a escoltá-la. O pai era pesquisador, gringo tão destoante quanto ela. Viera ao Ceará em busca de areia, estudava as dunas; catava os grãos cristalinos e punha-os na “máquina aumentadeira”. Artes do demônio, sua avó diria, mas o menino não se enganava: “micrôscôpe” era o nome. Assim, com a boca quase fechada, que o galego dizia: micrôscôpe, num arrastado gutural. Bonito. Seu Nonô enfezava-se.

- Falta cuspir na gente! – dizia na surdina, tendo o branco já deixado o bar. As rugas magricelas se amontoavam na cara velha, sisuda de nojo. – Ô fala imunda!

O menino discordava. E aprumava-se em frente ao caco de espelho, a porta do bangalô recostada, as miçangas da cortina bem juntas:

- Micróscôpi, micróscôpi – num olhar distinto ao reflexo. Estendia a destra num pedido cortês, a esquerda no bolso do paletó imaginário (provavelmente mexendo nos maquinários de um relógio idem) – Seu père puderia deixá eu olhá no micróscôpi? – e vigiava a porta.

Era ali a imagem do mais nobre pretendente que a princesa Iara poderia ter. Certo que não vinha em cavalo branco, mas nada que não se pudesse improvisar. Tomado daqueles tão saborosos devaneios é que se ia à casa do galego, ajudar-lhe nas pesquisas.

E, de fato, tanto embarcou em brincar com o pensamento, que se perdeu. Perdeu-se e achou-se e perdeu-se e achou-se diversas vezes seguidas, que para o menino-quase-homem achar-se significava, sim, estar ao lado dela, como seu cavaleiro, soldado e pretendente; tocá-la e rodopiar com ela - as dunas em noite enluarada, uma fogueira crispando, arrebentando fogos de artifício a fazer da cena a cena mais bonita e do devaneio o mais devaneio, do qual não se queria mais acordar – e isso tanto, que não soube mais. Assim foi que se perdeu e se encontrou, numa periodicidade de onda do mar: já feito elas oscilava, pendendo entre realidade e ilusão. E nessa pendência, de tão duradoura, se procurava abandonar o balanço das águas do imaginário, a água mesmo não lhe deixava. E então vivia de maresia. Maresia da cabeça.

Endoideceu.

O moreno, pretendente de Iara, cavaleiro do reino das águas, comandante dos soldados do castelo marinho na batalha contra o bando dos mexilhões (que nunca gostara mesmo de mexilhões) - esquadra esta jamais vencida por inimigo nenhum, nem mesmo pelos cangaceiros do mar (ressaltava, com ar austero) -, como se vê, confundiu realidade e sonho.

E já os cocos secos que catava punha na mão e, em movimento de catapulta: bum! Eram enormes bolas de feno inflamadas em parábola, arrasando a primeira bateria de mexilhões.

- Morra, cambada, morra, que num pode viver quem é inimigo de Iara! – aos berros à beira-mar, não via mais ninguém. Todos lhe viam, entretanto.

Celestina amava Cirino. Ele, no entanto, não teve lucidez para enxergá-la, olhos voltados para Iara – a francesinha -, só para Iara. Quando mergulhava, ia vê-la. Quando auxiliava o pai da moça, ali estava, um seu criado. Enlouquecera, e a Iara mesmo nem percebeu. Reparou-o mais alegre, extravagante, mais disperso..., mas era nova demais a estrangeira para discernir o transtorno do menino, verde demais para as coisas do imaginário, tanto quanto para as do coração. Francesinha divertia-se com os encantos daquele lugar e sequer notara emanar encantos tanto quanto, muito menos ferir alguém com eles.

Pois feriu.

Celestina – nova e magricela, morena-mel-de-abelha, em vestido de chita e laço de corda na cabeça – amava Cirino. Desde muito antes, caladamente, como ele à Francesa.

E foi ela, celeste, quem catou do mar o corpo quase sem vida do cavaleiro das águas. Era tardinha, de sol encandeante a dormir de um lado e lua amarela a despertar do outro. Foi na hora em que ambos se encontraram, a menina alva disse naquela fala arrastada que se ia.

Dois dias e duas noites se findaram para o seu regresso, o do menino-cavaleiro. A volta foi de gibão guarda-peito perneira e chapéu, contava ele. Disse ter, em sonho, passado espinho, frêpa de pau, sol de arribação e dum clarão a pino fez seu caminho e abriu os olhos: um quarto encarnado do barro. Estava de volta. Contou, aliás, seus dois sóis duas luas de desmaio direitinho, sem rodeio nem cacoete, sem o piscado do olho esquerdo e as sobrancelhas tão arqueadas, carregadas de expressões. Fora um sonho, garantia. Muita água de mar, só podia. Estava são, reiterava. E Celestina mulher confiava, bateu pé da cura do seu homem e levou junto no lombo a desconfiança entranhada do povo.

Os anos que não lhe dava a tez de novilha, o jeito austero da menina já mulher confirmavam. Amadureceu Celestina. Fingia não perceber aquele constrangimento lutado de Cirino na peleja com a maresia da cabeça, mas lho envolvia com seu cuidado amante, dando razão, certas vezes, às coisas desconexas que lhe saiam da boca sem intenção (e o olho que ele punha, de desconfiança de cachorro pé duro, quando acontecia). Celestina relevava.

- Fique aí pelos canto não, hômi, venha aqui pro terrêro, veje o céu comigo, ande. Esqueça isso.

Relevava como o esquecimento, o desnorteio. Não se falou de microscópio. Não se falou de Francesa. E respeitou-lhe aquelas poucas palavras acorrentadas num silêncio:

- Me desculpe de incomodar, lhe deixá ir só... mas num vô no mar, não. – o olho de cachorro.

E foi num dia em que Mundaú praia clara agachou-se, encolheu-se, duma senhora cerração; dia que as cinco da manhã que o sol se apresenta pareceu não existir; dia que, do nevoeiro que lhe desceu, só se via a fagulha das luminárias vagando (todo mundo vaga-lumes), que Cirino sentiu: era hora já.

Catou o olho de Celestina no breu da taipa e tomou-a pela mão até perto da porta, abriu ferrolho, pôs-se à soleira e foi com aquelas velhas sobrancelhas arqueadas que começou baixinho, só pra ela, um segredo, carregado de pausa, silêncio e dúvida; e anseio, pressa e calma; pensado e repensado, pisado e repisado, nuns soluços de cacoete:

- Num tive no mundo, num foi, Celeste?(...) Tava, mas num tava, num é, Celeste? Celeste... Celestina. Sabe por que, Celestina? (...) Foi o canto. O canto da Iara, Celeste, bonita tão bonita que me apareceu menina. Tu viste, Celeste?

- Se cala, Cirino. – angustiada já.

- Mas tu não sabe, não sabe, porque se fosse o boto, só se fosse boto é que tu sabia, que é mulher, tu; mas da Iara não sabe, não sabe o que é o canto, o vestido de escama colado no corpo e a brincadeira com as miçanga d’água e o rodopiado na dança no fogo da boca do dragão de São Jorge, é Celeste! O fogo do dragão de São Jorge que é fogo que arde na alma, ardeu a alma de São Jorge e trancou a cinza na lua, Celestina! – gestos, gestos muitos gestos. Mas disso sim tu deve saber, que tu é do Céu, num é, Celestina?! – E aqueles olhos de menino.

- Se cale, hômi, ouxe. – lágrimas nos olhos de breu.

- Das artimanha da Iara é que não, que não, não deve não saber... Celeste... Do céu celeste, e é por isso que é Ce-les-ti-na. É por que eu vivi a vida toda no encanto da Iara que eu assim, Celeste, e tu sabe disso. Eu me perdi do teus ólho, Celestina, e minha vida só morre morrida e acabada se no céu agora... Só morro se for no céu.

- Tá bom, Cirino, não escuto mais não!

- Escuta, mulher! – a voz feito um trovão. Ele agarrado no braço dela, perto bem perto, feito um segredo - É por isso que o vento tem que levá eu, entendeu? Que a cerração tem de me levá e me arrastá pra me guardá na gaveta de São Pedro, na gaveta de São Pedro onde ele guarda as estrela do céu celeste, e ele me guardá lá que é pra eu ficar contigo, que é pra eu ficar dentro de tu, que é pra eu me achar do mar e num ficar perdido, entendeu Celeste? Num ficar perdido quando fô pescá e ver Iara! – tocou o rosto tão molhado da novilha - Que eu só vivo são da Iara é contigo... só me curo contigo celeste... Só contigo, Celestina.

(...)

- Pronde tu vai?

Agarrada forte àquela mão morena de moço, repensou a sentença, não sem um travo de apreensão. Um ranço na língua, quase de um caju.

- Pronde tu vai... eu ?

- Deixa que eu me sumo no céu... pra me dormí em Celestina.

Já a areia depressa se afastava, o que devagar começara. Para trás, aqueles pés morenos fincados dispersaram os grãos num seu formato, que, há pouco, dali sairia completamente. E, como a ausência da marca súbita do passo na areia gris daquele dia cinza, foi-se também o dono dela. Só a cerração viu-o partir de verdade. Sumiu-se com a escuridão, num passo lento, lento, lento, num pé-ante-pé, e depois longo, longo, de ânsia e por que não felicidade, contentamento de menino e já ligeiro, ligeiro tão ligeiro, tão saltado, tão voado que as marcas mesmo não conseguiram alcançar.

Não as deixou mais.

Ninguém lhe viu mais.

E esperou Celestina não-sei-onde.

Abraço

Adeus,

Mas não ao cheiro de roupa lavada

Que me ficou depois.