sexta-feira, 25 de julho de 2008

A sombra (completo)

Um tombo surdo. Bumbo. Do outro lado.

A unha encarniçada parou: cavoucava o chão. Os pelos eriçaram dum medo. Depois, os dedos imundos do pé voltaram a se contrair como a horas, movimento de alicate, a catar o palito de fósforos imundo do chão idem. Onde estaria ele agora que o fio de sol, que entra por misericórdia pela falha da parede, entardecera? Continuava, entretanto, como se ainda visse. Agarrou alguma coisa: os dedos gordos, pretos, arrastaram, levando às mãos o objeto delgado. Um riso fraco de contentamento. Afastou a poeira num sopro e o perdeu novamente. Dedos imundos do pé direito foram buscá-lo desta vez, que o esquerdo tinha nós de cãibra. Se houve rancor da perda, quedou em outro lugar, na cara, não. As mãos roliças não sustentavam mais, os dedos inchados não sentiam, as veias obstruídas pelo aperto das algemas. Assim, quando lhe punha o palito entre as bolas intumescidas, não lhe agarrava prontamente, era como dá-lo a um bicho de cascos. Era bicho já. Os braços negros, duas ampulhetas: grossos no antebraço, finos nos pulsos e a grossura novamente. Quando o fio de sol amanhecia, erguia-os antes no limite das correntes, tentar adivinhar que tons traziam seus indicadores.

Um dia: “Roxos... e os... os seus?”

Nada em resposta, mas falou. Falou. Arfara diversas vezes até balir a cor e a cor cortara as ataduras que lhe puseram na boca antes de ir à catacumba, era como se lhe tivessem costurado os beiços e a cor – bendita cor - rompido a linha imunda, pêlo de animal sebento. “Roxos” libertou num esforço, mas não à toa: ouvira da cela contígua. Assim fora: um balido, depois uma sombra a remexer-se como diante de uma vela acesa, uma silhueta mais escura que a escuridão. Foi como se existisse sol por um instante discriminar o outro: sim, alguém estava ali e o fizera pergunta.

“Seus dedos... – arfando, arfando - que cor trazem... s... seus... dedos?”

Mas que longa longa frase! Que longo longo discurso identificara. Jamais poderia crer que seria capaz de entender idioma agora que os grilhões lhe tinham comido as peles dos pulsos e tornozelos, e que o silêncio, também faminto, comera palavras, todas elas, haviam calado há muito. Revia-se: a palavra era um espelho diante dele, única coisa que lhe diagnosticava não era bicho, pois que entendia e falava. Entendia e falava. Ergueria sua condição da imundície se o corpo obeso não podia: arfou, arfou, sacudiu-se não sem dor, ilinhou-se nos grilhões, desesperado com a constatação tão óbvia, especial: era preciso responder.

“H....” - guturais.

“Rr...rro...” – um canivete decepando a cabeça das costuras mofadas.

“Ro..xosss” – finalmente.

Estrondou-lhe nos ouvidos, era um leão rugindo ao meio-dia, rompendo a sesta da savana. Era uma macumba brandindo num terreiro, sacudindo das tumbas os velhos negros: os tambores lhe tocaram nos pulmões e a multidão lhe subiu pela traquéia, batucou as cordas vocais e explodiu pela boca.

“Roxos dedos tenho!” - Bendito seja Oxum lhe desdobrara a língua.

E era tão bela sua voz. Larga, grossa, como a do avô, o velho negro da carapinha prateada e das mãos de marceneiro, olorosas de carvalho. Trazia os dedos firmes naquele movimento preciso de poda e investida que era o entalhe, um enleio, uma dança com a mulher amada. Corria a canhota muito segura no centro do cabo, descia leve, raspando as “flerpas” do rosto, e relaxava o punho no manejo da ponta, cavando as rugas do olho. “O trivial, meu filho, se faz com o punho apertado, mas o segredo de usar a ponta está na falta da rudeza.” Era santeiro, o velho, mas rezava a reza dos negros, e assim lho catequizara às avessas, não sem santidade: São Jorge era Ogum ou Oxossi; Maria, Yemanjá. Era analfabeto e sábio. O mais sábio deles, pois que era ignorante. No início daquelas escuridões da prisão, passado o grito, o esperneio, a revolta, a reivindicação... ao lhe cair o silêncio da palavra, recordou o que aprendera: bem como no entalhe do carvalho, a rudeza afiada do grilhão exigia a falta dela. E com completa mansidão entalhou seus dias, cavoucados no chão imundo do calabouço. Por certo, não saberia dizer quando a lucidez lhe disse adeus, o que se fez em qualquer daqueles dias iguais. Não demorou, entretanto: logo a solidão das coisas foi sua inquilina e, então, não soube mais. Simplesmente, assim naturalmente, alcançou o estado do não saber: a solidão faminta lhe comeu as palavras e com elas o som das palavras e com ele as lembranças e com elas a sensação de ser gente. Era um fardo, saco de açúcar, a contrair-se vez em quando. Por esses dias, começou a fugir do fio de sol. Perceber-se para quê.

Mas quando a fala retumbou do outro lado da parede... a vida foi limpar-lhe a pasta esbranquiçada dos olhos: havia outro e se havia, não era só. E era. Existia, pois que outro de sua espécie lhe garantia isso (na verdade, pouco importava que fosse mesmo da mesma espécie). E quando a palavra brandiu novamente, fez vir de mãos dadas seus antigos moradores: cor, som, lembrança. Voltou a dar nomes e o delgado voltou a ser fósforo. Voltou a erguer-se feito planta a procura do fio de sol. E lembrou que nunca fora bom santeiro, uns olhos tão tortos, detalhes tão mal cavados, mas que fizera santos no chão imundo, cavoucando vincos de rosto na areia; que teve os pulsos apertados nos dias triviais e, sobretudo, fora profissional no manejar da ponta da afiada solidão. Agora nada dela mais.

“Os tenho... negros... negros hoje. Tenho... medo.” – numa tarde.

“Meus anelares... continuam arr... arroxeadoss...”

Era mulher. Ah, quanta dor não lhe causava voz tão bonita apresentar-se assim sufocada. Esteve certo de que lhe tinham prendido pelo pescoço, que devia estar fino qual o fósforo. Triste. Agora sentia dor pelo outro e era feliz por isso, pois o fez ainda mais humano e arfou um tanto mais para saber o nome dela. Recebeu silêncio. “Amanhã, amanhã.” – pensou, amanhã perguntaria. E, de novo, contou os dias. Fizeram-se novamente as horas.

Mas antes que o fio de sol amanhecesse, um tombo surdo. Bumbo. Do outro lado. E estranhamente a sombra alongada, vertical, fez-se horizonte. A sombra era prostrada agora.

“S..seu.. nom... nome?”

“Sss...seu nome? Diga?”

Entendeu depois que a solidão eterna virara inquilina Dela. Sim, esse era seu nome: Dela, ele pôs, antes de entristecer-se de sequer poder achegar-se para fechar-lhe os olhos. E quando voltou a catar o delgado no chão imundo não sentiu mais a vergonha familiar que tinha de ter dedos inchados, que não agarravam com firmeza a madeira; não se perguntou se os beiços que sopravam o palito pareciam com aqueles tão bem feitos, concentrados, do avô, ao expulsar a serragem dos colos das Virgens. Depois que a indiferença lhe inaugurou a nova condição, veio a velha moradora reatar suas costuras seculares dos lábios com pêlos sebentos de animal. E a solidão acabou-lhe a palavra. Os outros inquilinos sequer disseram adeus: foram-se no sono eterno da sombra Dela, ali deitada.

3 comentários:

  1. Sem delongas: ex-cep-cio-nal.


    *.*""

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  2. O conto ficou ainda mais bonito, mais desenvolvido no final. Tem umas coisas de caráter mais gramatical na minha revisão anterior que ainda tão valendo pra essa versão nova. Dá uma olhada lá no email, ok?

    "Foi como se existisse sol por um instante discriminar o outro: sim, alguém estava ali e o fizera pergunta."

    Acho que tu pode substituir esse pronome "o" por "lhe"... Não acho que gramaticalmente esteja errado assim, mas soa tão estranho, tão, sei lá, escrito, ainda mais pra alguém que tem uma escrita mais falada como você.

    "...bem como no entalhe do carvalho, a rudeza afiada do grilhão exigia a falta dela."

    Continuo achando esse período confuso. Dá pra entender, assim, na terceira leitura, mas a idéia é muito bonita, pra ficar perdida numa frase que podia estar bem melhor elaborada.

    É isso. Parabéns pelo conto, magricela. É um dos seus melhores, entre todos os que li :)

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  3. Olha aê, escrevedista! Tudo jóia contigo?

    Já setei teu blog! Vai ser ponto nas minhas andanças!

    o/

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