terça-feira, 8 de julho de 2008

Maresia e Cerração

Ele sacudia para o mar os cocos secos a se estenderem pela praia, catava os canudos esguios. Tombavam naquelas canelas finas as marolas brancas, saltadas pela areia de molho. Olhou o horizonte. Era sempre linda a reta azul de Mundaú, diferente das outras – podia crer, mesmo nunca de lá tendo saído. Devia ser. Se duvidar, aquele horizonte fino dos outros não era nem tão reto assim, nem tão azul, nem tão mesclado de verde, nem tão daquele jeito bonito e aprumado, feito traço de régua comprida. O mar de lá só podia ser melhor que o de outro lugar. Qualquer outro.

- E o que tem do outro lado? Do lado de lá, donde a gente não vê, depois da reta azul? – perguntou certa vez a ela, numa curiosidade infante, um tanto nervosa, um tanto encabulada.

- Há mais. Outras praias, enseadas, areais. Continua. – ela branca, pálida grão-de-areia, os tornozelos para fora dos babados do longo bege, barras molhadas das pequenas ondas a se entranharem nas teias da seda fina: nada propícia a litorais.

- Tem o resto, então? – e apertava as pupilas, buscando o fim.

- Exato, o... restô, como vocês dizem – e o buscava, a ele mesmo, nas pupilas castanho-verdes de menino, dele moreno: por que, assim de repente, tão num acaso, assomo, viu-o moço? Menino-homem?

- E como tu sabe, se vê igual a mim?

Quis consertar a frase. Pensou melhor. Olhou-a curioso:

- Vem cá, tu vê igual?

Riu-se a mocinha. Era alva como nunca reparara: os cabelos negros lhe caíam em longos cachos, mais tufos de algas escuras que fios. E corriam ao longo da face um nariz muito afilado, uma boca muito delineada, encarnada; uns olhos tão azuis... Corriam mesmo que era tudo em traços finos muito finos. O rosto não se fazia de rupturas, cavas, Alpes; antes, se o corresse com o indicador, sentir-se-ia nada mais que a continuidade de uma pele macia, clara e homogênea. Uma harmonia: assim gostava ele de pensar (o menino, agora repentino moço àqueles olhos azuis).

Por isso mesmo achou até sensato que Nosso Senhor permitisse galega de porte tão destoante ver diferente. E quis saber.

- Bobo. – num riso alvo de dentes idem – Mergulha comigo?

- Eu não. Enjoei de mar hoje. Posso só ?

- Pois vê.

Mergulhou. E a chamaria: Iara! (se não a conhecesse). E podia jurar que ela acenar-lhe-ia, atendendo ao chamado. Que era a mãe das águas seguramente quem se erguia ali, brilhando aos raios saturados da tardinha, reluzindo feito cortina de contas cristalinas, diante dos seus olhos de moço. Apaixonou-se. E podia dizer: por Iara mãe-das-águas, seguramente.

O vestido bege colado ao corpo dava ares de um nu de deusa, que o menino nunca se havia permitido enxergar. O moço viu. E a desejou naquele instante. Abraçando as canelas, sentado do jeito que estava na areia fina, projetou-se tomando-a nos braços, cheirando aqueles cabelos salgados... e meneava a cabeça procurando um odor imaginário.

Ela brincava na água, rebolando miçangas para o ar; e ele, com a imagem da moça, brincava de fantasiá-la dançarina numa noite gris de lua alta, daquelas incrustadas de faróis piscantes; fantasiá-la contando estrelas, deitada ao seu lado. E mais, muito mais – ousou delirar: as mãos dadas consigo.

- Que tem? – apertando os cabelos-algas gotejantes.

- Eu? Nada! - despertado da noite onírica.

Envermelheceu.

- Preciso ir. É tarde. Mon père espera já. – a fala sempre lenta, arrastada.

Concordou, pondo-se cavalheiro a escoltá-la. O pai era pesquisador, gringo tão destoante quanto ela. Viera ao Ceará em busca de areia, estudava as dunas; catava os grãos cristalinos e punha-os na “máquina aumentadeira”. Artes do demônio, sua avó diria, mas o menino não se enganava: “micrôscôpe” era o nome. Assim, com a boca quase fechada, que o galego dizia: micrôscôpe, num arrastado gutural. Bonito. Seu Nonô enfezava-se.

- Falta cuspir na gente! – dizia na surdina, tendo o branco já deixado o bar. As rugas magricelas se amontoavam na cara velha, sisuda de nojo. – Ô fala imunda!

O menino discordava. E aprumava-se em frente ao caco de espelho, a porta do bangalô recostada, as miçangas da cortina bem juntas:

- Micróscôpi, micróscôpi – num olhar distinto ao reflexo. Estendia a destra num pedido cortês, a esquerda no bolso do paletó imaginário (provavelmente mexendo nos maquinários de um relógio idem) – Seu père puderia deixá eu olhá no micróscôpi? – e vigiava a porta.

Era ali a imagem do mais nobre pretendente que a princesa Iara poderia ter. Certo que não vinha em cavalo branco, mas nada que não se pudesse improvisar. Tomado daqueles tão saborosos devaneios é que se ia à casa do galego, ajudar-lhe nas pesquisas.

E, de fato, tanto embarcou em brincar com o pensamento, que se perdeu. Perdeu-se e achou-se e perdeu-se e achou-se diversas vezes seguidas, que para o menino-quase-homem achar-se significava, sim, estar ao lado dela, como seu cavaleiro, soldado e pretendente; tocá-la e rodopiar com ela - as dunas em noite enluarada, uma fogueira crispando, arrebentando fogos de artifício a fazer da cena a cena mais bonita e do devaneio o mais devaneio, do qual não se queria mais acordar – e isso tanto, que não soube mais. Assim foi que se perdeu e se encontrou, numa periodicidade de onda do mar: já feito elas oscilava, pendendo entre realidade e ilusão. E nessa pendência, de tão duradoura, se procurava abandonar o balanço das águas do imaginário, a água mesmo não lhe deixava. E então vivia de maresia. Maresia da cabeça.

Endoideceu.

O moreno, pretendente de Iara, cavaleiro do reino das águas, comandante dos soldados do castelo marinho na batalha contra o bando dos mexilhões (que nunca gostara mesmo de mexilhões) - esquadra esta jamais vencida por inimigo nenhum, nem mesmo pelos cangaceiros do mar (ressaltava, com ar austero) -, como se vê, confundiu realidade e sonho.

E já os cocos secos que catava punha na mão e, em movimento de catapulta: bum! Eram enormes bolas de feno inflamadas em parábola, arrasando a primeira bateria de mexilhões.

- Morra, cambada, morra, que num pode viver quem é inimigo de Iara! – aos berros à beira-mar, não via mais ninguém. Todos lhe viam, entretanto.

Celestina amava Cirino. Ele, no entanto, não teve lucidez para enxergá-la, olhos voltados para Iara – a francesinha -, só para Iara. Quando mergulhava, ia vê-la. Quando auxiliava o pai da moça, ali estava, um seu criado. Enlouquecera, e a Iara mesmo nem percebeu. Reparou-o mais alegre, extravagante, mais disperso..., mas era nova demais a estrangeira para discernir o transtorno do menino, verde demais para as coisas do imaginário, tanto quanto para as do coração. Francesinha divertia-se com os encantos daquele lugar e sequer notara emanar encantos tanto quanto, muito menos ferir alguém com eles.

Pois feriu.

Celestina – nova e magricela, morena-mel-de-abelha, em vestido de chita e laço de corda na cabeça – amava Cirino. Desde muito antes, caladamente, como ele à Francesa.

E foi ela, celeste, quem catou do mar o corpo quase sem vida do cavaleiro das águas. Era tardinha, de sol encandeante a dormir de um lado e lua amarela a despertar do outro. Foi na hora em que ambos se encontraram, a menina alva disse naquela fala arrastada que se ia.

Dois dias e duas noites se findaram para o seu regresso, o do menino-cavaleiro. A volta foi de gibão guarda-peito perneira e chapéu, contava ele. Disse ter, em sonho, passado espinho, frêpa de pau, sol de arribação e dum clarão a pino fez seu caminho e abriu os olhos: um quarto encarnado do barro. Estava de volta. Contou, aliás, seus dois sóis duas luas de desmaio direitinho, sem rodeio nem cacoete, sem o piscado do olho esquerdo e as sobrancelhas tão arqueadas, carregadas de expressões. Fora um sonho, garantia. Muita água de mar, só podia. Estava são, reiterava. E Celestina mulher confiava, bateu pé da cura do seu homem e levou junto no lombo a desconfiança entranhada do povo.

Os anos que não lhe dava a tez de novilha, o jeito austero da menina já mulher confirmavam. Amadureceu Celestina. Fingia não perceber aquele constrangimento lutado de Cirino na peleja com a maresia da cabeça, mas lho envolvia com seu cuidado amante, dando razão, certas vezes, às coisas desconexas que lhe saiam da boca sem intenção (e o olho que ele punha, de desconfiança de cachorro pé duro, quando acontecia). Celestina relevava.

- Fique aí pelos canto não, hômi, venha aqui pro terrêro, veje o céu comigo, ande. Esqueça isso.

Relevava como o esquecimento, o desnorteio. Não se falou de microscópio. Não se falou de Francesa. E respeitou-lhe aquelas poucas palavras acorrentadas num silêncio:

- Me desculpe de incomodar, lhe deixá ir só... mas num vô no mar, não. – o olho de cachorro.

E foi num dia em que Mundaú praia clara agachou-se, encolheu-se, duma senhora cerração; dia que as cinco da manhã que o sol se apresenta pareceu não existir; dia que, do nevoeiro que lhe desceu, só se via a fagulha das luminárias vagando (todo mundo vaga-lumes), que Cirino sentiu: era hora já.

Catou o olho de Celestina no breu da taipa e tomou-a pela mão até perto da porta, abriu ferrolho, pôs-se à soleira e foi com aquelas velhas sobrancelhas arqueadas que começou baixinho, só pra ela, um segredo, carregado de pausa, silêncio e dúvida; e anseio, pressa e calma; pensado e repensado, pisado e repisado, nuns soluços de cacoete:

- Num tive no mundo, num foi, Celeste?(...) Tava, mas num tava, num é, Celeste? Celeste... Celestina. Sabe por que, Celestina? (...) Foi o canto. O canto da Iara, Celeste, bonita tão bonita que me apareceu menina. Tu viste, Celeste?

- Se cala, Cirino. – angustiada já.

- Mas tu não sabe, não sabe, porque se fosse o boto, só se fosse boto é que tu sabia, que é mulher, tu; mas da Iara não sabe, não sabe o que é o canto, o vestido de escama colado no corpo e a brincadeira com as miçanga d’água e o rodopiado na dança no fogo da boca do dragão de São Jorge, é Celeste! O fogo do dragão de São Jorge que é fogo que arde na alma, ardeu a alma de São Jorge e trancou a cinza na lua, Celestina! – gestos, gestos muitos gestos. Mas disso sim tu deve saber, que tu é do Céu, num é, Celestina?! – E aqueles olhos de menino.

- Se cale, hômi, ouxe. – lágrimas nos olhos de breu.

- Das artimanha da Iara é que não, que não, não deve não saber... Celeste... Do céu celeste, e é por isso que é Ce-les-ti-na. É por que eu vivi a vida toda no encanto da Iara que eu assim, Celeste, e tu sabe disso. Eu me perdi do teus ólho, Celestina, e minha vida só morre morrida e acabada se no céu agora... Só morro se for no céu.

- Tá bom, Cirino, não escuto mais não!

- Escuta, mulher! – a voz feito um trovão. Ele agarrado no braço dela, perto bem perto, feito um segredo - É por isso que o vento tem que levá eu, entendeu? Que a cerração tem de me levá e me arrastá pra me guardá na gaveta de São Pedro, na gaveta de São Pedro onde ele guarda as estrela do céu celeste, e ele me guardá lá que é pra eu ficar contigo, que é pra eu ficar dentro de tu, que é pra eu me achar do mar e num ficar perdido, entendeu Celeste? Num ficar perdido quando fô pescá e ver Iara! – tocou o rosto tão molhado da novilha - Que eu só vivo são da Iara é contigo... só me curo contigo celeste... Só contigo, Celestina.

(...)

- Pronde tu vai?

Agarrada forte àquela mão morena de moço, repensou a sentença, não sem um travo de apreensão. Um ranço na língua, quase de um caju.

- Pronde tu vai... eu ?

- Deixa que eu me sumo no céu... pra me dormí em Celestina.

Já a areia depressa se afastava, o que devagar começara. Para trás, aqueles pés morenos fincados dispersaram os grãos num seu formato, que, há pouco, dali sairia completamente. E, como a ausência da marca súbita do passo na areia gris daquele dia cinza, foi-se também o dono dela. Só a cerração viu-o partir de verdade. Sumiu-se com a escuridão, num passo lento, lento, lento, num pé-ante-pé, e depois longo, longo, de ânsia e por que não felicidade, contentamento de menino e já ligeiro, ligeiro tão ligeiro, tão saltado, tão voado que as marcas mesmo não conseguiram alcançar.

Não as deixou mais.

Ninguém lhe viu mais.

E esperou Celestina não-sei-onde.

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