terça-feira, 8 de julho de 2008

Parto

Chão de terra roxa. Barro prensado. O sol àquela hora da tarde cozia a taipa, encarnando paredes e assoalho. Mirava o chão, só, e não sabia se o que calava era a boca, o lábio ressequido, a vista ou os ouvidos. Era a frustração lhe talhando cego, surdo e mudo. Frêmito, correu as veias outra vez o sangue septuagenário e outra e outra, sempre mais rápido dada a fissura que lhe afogueava. As velhas pupilas - escusas num areal de rugas amarelas, embebidas na baba esbranquiçada da catarata, recortadas por finos estiletes sanguíneos - salgaram. Era limão, pimenta e sal nos olhos, turvos, queimados que estavam. Entocou na algibeira do casaco o lenço retorcido – a mão cálida, trêmula.

A mesma destra arou os fios grisalhos da carapinha com as pontas dos dedos, lentamente, rasgava caminhos. Pareceu que punha a cabeça velha a pensar. Mirava o chão, só, o barro prensado largava-se fácil e em tempo de vento emporcalhava a casa. Comia-se poeira. Era terra deitada nas redes, na cristaleira, no fogareiro, na penteadeira... uma aporrinhação. O velho não tinha modos de erguer a vista. Era a vergonha petrificando a direção do olho.

Recostou o chapéu gasto ao ventre e caducou com os pelos já acinzentados da camurça. O suor empapava-lhe a camisa rota, encardida. Trouxe-lhe a caneca d’água uma senhora decerto também setuagenária. Levou ao cômodo, mas não lhe deu em mãos: deixou que a filha caçula o fizesse.

Recusou num esquivo, um gemido bruto - gutural, sem retirar os olhos do chão. Morreria de calor e sede, que a vergonha já o findara por dentro. Era ali só carcaça. Estalou o fundo retorcido da caneta na mesa de tábua. A moça não tinha modos para insistir, oferecera a água num estender de braço, mal o olhando nos olhos – por certo, também a vergonha lhe fazia estrábica. Concentrou-se também no barro prensado.

Com ela - nova, mestiça, cabelos pelo meio das costas, ancas largas e peitos fartos -, um rapazote de, quem sabe, mesma idade. Franzino, amarelo, ostentando um bigode ralo pelo meio da cara – pelada, sem ruga nem marcas. Num silêncio fitavam o velho e ele, o chão.

“Busque a bassora, mulher, que o barro já se desfez em poeira.” Arrematou lento, grave o septuagenário à senhora de idade. Baixo e funestamente. Seco tal qual o dia.

Afobou-se o rapazote. Catou o suor na testa amarela com a palma da mão, balançou a cabeça e bufando duas ou três vezes – num ritual semelhante ao de quem acabara de entornar meio litro de aguardente –, disse quase cuspindo.

“A gente casa, se o senhor quiser.”

No meio da cara a cusparada do moleque. No meio da fronte enrugada, em fogo, do velho. Dilatou as narinas num sopro bruto e deixou o suor empapar-lhe a face. Esconder-se entre as rugas. A moça assistia, decorava-lhe a velha fisionomia austera posto que não lhe tirava os olhos agora. Punha-se aterrorizada. Pálida como nunca fora.

Tocando o chapéu para um lado, contemplou a moça lentamente. Olhou-a, olhou-a, calado sempre, o rosto redondo, delicado, os cabelos longos dum “negro quase azul” - assim dizia quando a tomava no colo – o corpo farto de carnes, e agora o ventre evidente, saliente já no vestido bege rendado. Não agüentou olhar-lhe muito. E a voz grossa, embargada, ecoou num ódio desmedido. Numa sentença grave, calculada, palavra ante palavra.

“A filha é minha, eu que tive.”

E por um momento, tamanho era naquele ego cansado o sentimento de posse pela cria, que se sentiu todo ventres, úteros, óvulos e tudo o mais necessário para tê-la parido ele mesmo. Recostou novamente o chapéu ao ventre, mas agarrava mesmo as entranhas com as mãos, tentativa chão de retê-la (a caçula) ao lugar de origem. Reviu as manhãs em fogo, sol das onze, em que saia a cortar cana, derrubar cocos, arrancar matos para as beberagens da menina – fraca que era das pernas desde a infância. Também as vezes em que lhe tomara em febre nos braços lembrara, as ladainhas gaguejadas ao punho da rede, velas acesas ao Anjo da Guarda, a São Cosme e Damião. Que lhe livrasse a filha mulher, que lhe livrasse a filha mulher.

“Meu pai, nóis quer casar...”.

“Cale a boca, Sucena!” O balido estridente, trêmulo, soara da cozinha. A luz das velas já acesas no oratório, ladeado à trempe, vacilava nas paredes, desenhava a silhueta da setuagenária nelas. Era noite, mas a lua não aparecera, sequer o vento frio. Só um bafo soturno varria a casa.

“A filha é minha, eu que tive!” Ressoou socando a taipa, como a passagem de um carro de bois.

E no calor da discussão em círculos, prolixa, alargada a mais não poder, o moço não pôde. Levantou-se – branco – da tênue cadeira de palhas e indicando o ventre da moça, bradou uma tréplica vacilante.

“Mas o filho é meu!”

Abortaram-lhe, sentiu o velho. Arrancaram-lhe a dentes a gerada em suas entranhas. Tiraram-lhe do peito a cria ainda débil. A noite bufou casa adentro e pôde ver o septuagenário recuar as espáduas arqueadas como num soco de carabina, erguer súbito os olhos, arregalá-los, e queimar com eles o infeliz.

Lançou a canhota grossa num espalmo sobre a mesa, o golpe reverberou seco, brusco, furioso, a caneca quedada empoçou o barro, corando-lhe em tom de vinho. Trincou os dentes, mastigou os beiços. Ninguém lhe desmamaria rês tão ansiada, onça nenhuma lhe roubaria a cria, quem dirá um perdigueiro, um vira-lata. O franzino o encarava prontamente, punhos cerrados pareciam preparar-se para a luta iminente, achou-o patético naqueles modos. Calá-lo-ia.

“A filha é minha, eu que tive. E o que tem nela, vira meu também.”

Um comentário: