terça-feira, 15 de julho de 2008

O Milagreiro da (I)inocência

De cima, bastava arquear-se um tanto, cuidando em não cair, e esquivar-se levemente para a direita que lá estavam elas a girar periodicamente como hastes de um carrossel. 1, 2, 3, 4, 5... milhares. Tactactac. Não deviam ser mais que duas dezenas de pequenos fiozinhos de aço, mas ali, girando presos à roda, se duplicavam, triplicavam, mudando a paisagem: a terra encarnada, vista de onde se pedalava, fragmentava-se na brincadeira da roda, parecendo filme de slide, tela-per-tela. Tactactac. Ficava bonito se pusesse umas fitinhas de São Francisco de Canindé. Ficava. A bicicleta era azul celeste, aro circular. E, vixe, que gostava demais daquele modelo, nunca o possuíra – dizia – nunca possuíra nenhum e, depois de velho, lá estava com ela pra cima e pra baixo. Mais que impossível!

- Mais que impossível! – disse em voz alta pra si mesmo, o homem da feira prestando atenção.

Disse para si, para o feito, para a possibilidade iminente de ser menino outra vez, vitória miúda. E caçoou intimamente do dono da barraca quando quis saber o que havia dito.

- Nada não, moço, é comigo.

Era com ele. Transformação íntima. Dele. Um retorno aos tempos de uma infância que não tivera. E, ave, que as pessoas não falam com elas mesmas? Devia ser por isso que muitas não sabiam falar com as outras. Rijeza é falta de prática e ele praticava, de veras, consigo. Deixou o porco de paga e foi-se embora na danada da magrela, tocando a sineta, trim-trim, sim, por que não é que até sineta tinha?

- Pois não é que até sinete tem, Maria?

- Volte.

- E os pneu? Tem uns aro que se boto umas fitina de São Franscisco, pense aí..

- Volte. Volte e vá buscar o porco! – um brado acordando o sono das crianças, leve sempre leve, o sono de fome. Irrequietas, remexiam-se nos berços, procurando jeito de o peso nos olhos vir antes da bendita dor fina. Quando apertava, vinha a mão de mãe dar-lhes cada um, um terço. Apertavam as contas, intercedendo pelo peso nos olhos. Acabavam mordiscando as miçangas até cochilar.

- O porco! – catando os rosários na gaveta da cômoda.

Não dava ouvidos. E não era indiferença, não era teatro. Seu Firmino nem sabia o que lá era teatro. Estava mais pra encantamento. Daquele que não se permite que o outro estrague, que mal permite o outro, a não que ele seja o objeto de desejo. Quando se sonha, o que se quer não é só não acordar, mas, sobretudo, não ser acordado por outro. E o que não dizer do sonho de olhos abertos! O sono acordado também indeseja ser desperto e, certas vezes, luta-se por isso até inconscientemente. Lá estava Seu Firmino, resistência de São Sebastião, as flechas nas costelas.

- Mas se eu acho dois dedo de graxa, aí fica boa. Acaba os rangido, tais vendo, Maria? – os olhos amiudados não prestavam atenção no indicador que se movia diante deles, um tanto dissimulado, apontando as rodas.

- Quede o porco? Como é que foi isso?!

Era ainda madrugada quando saíra de casa. A terra tão em geral encarnada ia fria, vestida de griz, feito a lua de São Jorge, ainda intocada pelos raios dum sol que nasceria dali uns 30 minutos. Silêncio do sertão. Sabe qual? Silêncio de infância, que quase nunca tem silêncio - sempre gritaria, felicidade de aniversário –, mas quando existe, é feito esse do sertão: silêncio fresco, revigorante, de mata ainda orvalhada, de ressonar de gentes que ainda dormem, de chão que ainda dorme, de casas de taipa que ainda dormem, do sono de São José, que pendendo na vara de lírios e na primeira parede da casa, dorme ainda. Só um ônibus longe, muito longe interrompia, e, naquela manhã, também a chinela de Seu Firmino mais quatro patinhas desajeitadas de tão roliças. Ele e o porco quebrando o silêncio de infância. Mas davam à cena um som bonito - sim, o som fazendo poesia para os olhos. E naquela caminhada, o frescor e a liberdade que lhe trazia aquele filtro azulado de manhã não parida soou-lhe no pé do ouvido como um ente celeste em forma de vento, deitando-lhe a idéia de que todo aquele filme mais rápido é que devia ser bonito mesmo. Botou-se a correr. Era bonito, sim, muito mais.

- Bonito, muito mais! – haja liberdade.

- Oooooinc! - haja guincho do coitado do porco que nada de sentir liberdade nenhuma naquela carreira desembestada.

Slow Motion novamente.

O dedo grande de São Sol tocou o chão com firmeza, espalhando-se gordo levemente para os lados como quando Seu Firmino assinava documentos. O astro colocava ali, lentamente, sua digital. E o filtro azul se confundia, revelando o matiz dum dia claro.

Cedo chegou à feira.

Perdeu-se no meio de tanta gente, mais que o porco, suspeitava. As tendas rotas se erguiam feito dominós de osso, antigos e imundos, dando-lhe a certeza de que empurrar uma só delas era pôr fim a todas. Nas estreitas avenidas, carneiros, galinhas, cachorros famintos e porcos disputavam com as gentes de longas pernas as vias de mão dupla, tripla, sabe-se lá. E dez reais, fruta podre, cacarecos, ovos, leite, vinte conto, roupa, calçado, tapioca, feijão verde, forró, coisas do Paraguai, e, mais na frente, solitária e brilhante – assim a vira – bicicleta. As mãos enrugadas se cruzaram atrás das costas lentamente, se agarraram firmes, contendo a surpresa nada boa para os negócios, e o pescoço arqueou-se para a frente, reparando fixo, o olhar inquisidor. Os pés compassavam também inquisidores em torno da mercadoria.

- Troca o porco nessa bicha? – o olho na magrela.

- Quanto pesa o bicho?

- Mais de cem quilo, co’certeza. – ainda lá.

Negócio fechado. As mãos se desataram permitindo a tal alegria infantil, saltando num brado rouco, ainda tímido e desaprendido, de quem não teve muitas felicidades pra treinar.

- Mais que impossível!

A mulher fechou-se, não só a cara. A filha caçula, entretanto, nada contrafeita, saltou do berço, largando as continhas, ir ver que era aquilo que lá fora, recostado ao parapeito, brilhava feito pérola ao sol das dez. Uma auréola se formava em torno da carcaça azul céu.

- Pérola. Que acha?

- Mas é um lindo nome mesmo. Pois vai ser Pérola. E quando você tiver canelas maiores, ensino a andar. – a pequena rompendo a tal da inaceitação do outro na coisa do encantamento. Permaneceu.

Estava selado ali compromisso mais importante que. Feito Pérola brilhavam aqueles dois olhos, ambos infantes, mesma idade, feito Cosme e Damião. A mulatinha tocou-lhe o rosto e, como vara de condão, fez em novo, sumiu com as rugas tão marcadas da cara fogueada, tanto sóis. Não era mais um sexagenário ali, diante daquela que nem encaravam como pessoa ainda, tão miúda e mal vivida nos seus talvez seis anos. Tinha seis, como ela. Não, talvez um tanto mais, um irmão mais velho, um Anjo da Guarda, que lhe transmitiria conhecimento milenar: sentir o vento passar pelos cabelos mais rápido do que quando se corre, sentir a vida passando rápido e matizando as cores bonitas do sertão que, quem caminha, só vê separadas, pensando serem todas iguais, da família do amarelo-queimado-fome-seca. Tudo mentira. As rodas de carrossel misturam as cores em aquarela.

- Mentira, as rodas de carrossel misturam as cores... – agarrado naquela mão miúda.

- Se vai ficar com essa bicha, arrume de comer, por que do pouco que tem nessa casa não lhe dou direito. – de dentro do casebre.

Pôs as mãos no gidão e foi-se retirando, um cachorro magro e velho, rabo entre as pernas, a pedir comida casa em casa.

- Posso ir com o senhor? – as mãozinhas morenas no pedal.

Olhou Maria com seus olhos de cachorro. A mulher nada disse e os cachinhos da menina saltaram na garupa. A outra balbuciou alguma coisa com a santa na parede da trempe.

(...)

- Uma, duas ,três, quatro.... está contano?

A bicicleta parada rente à margem do açude, a cela já rachada da quentura do meio dia. Os dois, professor e aluna, pés na água.

- Não mexa os pés, fique paradinha. Conte as onda, uma, duas... Tais vendo? Sabe contar?

Sacudiram-se os cachinhos afirmativamente. Os dedinhos interessados como que tocavam as marolinhas da água barrenta.

- Sabe Jesus?

Cachinhos afirmativos.

- João evangelista disse que Jesus Cristo, Nosso Senhor, andou nas água. E salvou São Pedro andando nas água, entende? Mas agora atenção: me disse Zé Sarraceno... – em tom de segredo, segredíssimo.

E disse que Zé Sarraceno lhe disse que o jeito que o Cristo havia conseguido o prodígio era outro, não que ele não fosse filho de Deus, só que era esperto: contara as ondas, uma a uma e fez das marolinhas como que uma ponte, por onde andou tranquilamente. Bicicleta passaria nela?

- Foi de maré em maré, tais vendo?

- E foi?

- Na verdade! Agora escute: se ele salva um home andando nas água, na bicicleta, que anda mais rápido, você não acha que eu salvo eu, você, a mulher, mais dois filho e os cachorro, acha não? – o riso infante no canto da boca, dissimulado riso de seis anos - Deus vai se impressionar tanto, que vai mandar é muito mais porco.

Trim-trim...

- Vá contano! – para a margem – muito mais porco – para si – muito mais porco – os olhos no céu.

Trim-trim...

(...)

Inocência, na beirada do açude, esperou-o até ir-se pôr em casa, junto com o sol. À noite, esnobou com o dorso da mãozinha o feijão de janta: que o pai fora buscar comida, dizia. Que ia aparecer à porta com mais porco. Confiante (I)inocência.

2 comentários:

  1. Agora tá mais bem estruturado, magricela! Principalmente o final, que tava brusco, subentendido demais.

    Acho que a troca do porco pela bicicleta ficou reforçada demais ao longo do texto, sei lá, acabou repetitivo. Mas isso pode ser usado como recurso narrativo, à la "A vinha dos esquecidos": aquele fato que, por ser tão repisado, ganha as dimensões de uma coisa que marcou os personagens, deixa de passar como detalhe pro leitor. Vê aí se isso cabe, no caso do seu conto.

    Outra coisa: dá uma revisada na pontuação e em algumas ortografias, ok?

    No mais, gostei mais ainda da história. Continua muito bonita e dando saudades de andar de bicicleta.

    Ah, e percebi o retorno à Clarice aí, tão marcado que. :P Que foi isso? :P

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  2. Mayyyyyyyyy!!!!!!!!!!
    e eu voando aqui sem ter visto seu blog!
    huahuauhauh
    agora ja tenho o q ler
    vou ler tudo hein?!
    Acordei otimo
    ainda meio com sono., mas otimo!^^
    Agora posso ter suas obras mais perto de mim
    adoro isso!!!
    Bjaum enorme!!!!

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