sexta-feira, 11 de julho de 2008

Compulsão

Fartamente rolaram-lhe grossas pela tez cândida as águas que garantira a si mesma, dias atrás, jamais viriam.
Vieram.
Abundantes já, lavaram-lhe o rosto tal qual fardos perolados a despencar-lhe pelo corpo, manchar-lhe a veste de casimira bordada à custa da mãe. Não tardava chegar a hora de correr as mãos pelo rosto bruscamente, enxugar o pranto, apagar vestígios. Contudo, e se, ao passar a destra sobre a face, sentisse embebida sua pele ainda no cheiro Dele? Que faria? Teve medo, que, por certo, choraria as águas que lhe restavam, secaria suas grotas, levá-las-ia e a si – quem sabe – a bancarrota, digladiando-se corpo e alma assim ligeiro e brusco a portas trancadas: olhos fechados, punhos cerrados. E o pensamento Nele e só Nele. nele? Nele. Amaldiçoaria; xingaria cheiro tão libidinoso e carnal que lhe invadia as narinas, incitando-lhe o desejo de sorver-lhe novamente. Tudo calada, calada sempre. Como quando se resignava às extravagâncias Dele. Talvez um grito só, uníssono, gutural, escapasse-lhe da boca antes de cair-se exausta, estéreo de pranto, de sentido, de tudo e de nada.
Minutos-horas de silêncio.
Lentamente, o corpo se apieda, aquieta e condescende com as imagens difíceis de conter. Deixou-lhe vir o primeiro beijo, no sítio com os amigos; as juras de amor eterno – assim clichê - encorajadas pelo rum; a noitada, cantoria, bebedeira, em que se avivaram de ambos os instintos, consumados num ato rápido e negligente, tal qual um avexo, um mijo, um cuspe. Um tanto quanto diferente da entrega plena que ela negava, mas sonhara um dia. “Bobagem, coisa pequena”, refutava. Deixou-lhe vir ainda a noite em que o beijo molhado e o vômito ao carpete da sala imprimiram-lhe o mesmo odor. Cheiro forte, bolorento, embriaguez de vodka. Ateve-se a balbucios desconexos ao ombro dela. Rapsódias, sentimentos. Pôs fora não só álcool e guarnições. E como, ainda sim, podia conter no corpo, na camisa suada, na nuca (!), cheiro bom de recomeço?
Vomitara, dissera bobagens, quebrara a louça de porcelana à cozinha, mas, num abraço, tornou tão banal o que causara. Como?
Ainda àquela noite, pensou depois, cigarro à mão – Ele, desacordado, mal coberto pelo lençol – o que diriam de ela ter admitido que Ele a tomasse, ainda que completamente bêbado. Sentiu-se suja, e lançou mão do orgulho para contornar os sentidos, pondo no rosto um semblante de poder. Dona da situação.
“Eu quis. Eu que quis”, tragou.
E ergueu-se, não tinha sono. Ainda despida, recostou-se à soleira da porta, contemplou-o debruçado; e pôs-se a pensar – persistindo com os devaneios de poder – que não Ele lhe possuía, mas ela o fazia de objeto, garantindo-o a cada posse. Num sorriso, concluiu que de nada valia enumerar as camas e corpos perlustrados por Ele ao longo daquela noite, se só ali, na cama dela corpo dela, residia seu ninho, onde caia desacordado, baixava a guarda, fazia-se menino.
Abriu os olhos. Tomou em mãos os retratos da escrivaninha. Poucos. Momentos unicamente. Lançou-os num assomo sobre a cama e viu a casa. Sentiu-se lenta, vista turva, cabeça pesada, como depois de um porre de vinho ou trago de baseado. No lar, persistiam as posições dos móveis, jarros, cortinas – tudo tal qual Ele deixara – e o silencio-prurido que engolia o apartamento, o omitia da vida e a arrastava junto. Sentir-se pouco pra tamanho espaço fez-lhe recordar o quanto queria um filho. “me faria companhia”, comentou com ele certa vez. Que comprasse um cachorro, aconselhou-a.
Amargou-se. Não queria um bicho, queria um filho, fruto de suas entranhas, em quem pudesse descobrir-se nos traços, senão na personalidade; que a surpreendesse com seus trejeitos... por quem dar a vida, chorar, sofrer parecesse justo. E acordou – erguendo-se do canto – que um primogênito deveria constituir-se seu mais novo projeto, que só assim vingaria dignamente o sumiço Dele. E fez questão que fosse homem, enquanto se despia. Tomaria um banho, poria o longo incrustado com pedrarias e faria um filho àquela noite.
Isolaria quaisquer características do pai – de quem, aliás, não lhe importava sequer o nome -, ignoraria. Por dádiva, alimentaria o filho de amores paterno e materno depurantes, fulgurantes e tamanhos que supririam dele as necessidades todas, possibilitando-lhe viver para ela e unicamente para ela. Transformá-lo-ia numa sua imagem masculina e guardaria e aguardaria por toda a vida as águas que lhe viessem reabastecer as grotas para secá-las às decepções que aquele nascido de suas vísceras lhe traria, que por ele choraria dignamente.
Tomou a bolsa, atou as sandálias, viu o apartamento outra vez. E, girando o trinco, enfezou-se com o silêncio-prurido, ao qual dispersou num balido estridente, deixou bem claro:
“Farei um filho sem você!”
E acendeu um cigarro.

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