terça-feira, 8 de julho de 2008

É sempre o tempo

À Débora Medeiros, Revisora, Sempre.

À Dhenis Maciel, pelo gérmen de romantismo,

subjetividade e encanto, colhido cotidianamente.

É sempre o tempo que nos põe afastados, sempre ele. Quando nos falávamos noite passada, não demorou até que as horas nos engolissem. A meia-noite se apresentou e nos fechou a cortina no meio dos olhos.

Serenou lá fora. Não choveu, entretanto. Lamberam as janelas os pingos d’água, suaram-lhes somente, e a hora que reparte a noite em madrugada soou no relógio centenário da sala. Despedi-me com os olhos em sereno, tardava já.

Revê-lo tinha sabor de novo dia, de manhã na praia, de afago, borboletas no estômago e mãos em neve. Restava-me decorar-lhe o rosto com o indicador, que era retê-lo eternamente, desenhá-lo na memória em carvão e giz, adormecer na doce certeza de lembrá-lo ainda detalhe per detalhe ao despontar do dia; seus olhos, a procura com afeto; seu colo, minha guarda, meu escudo, minha lança. E era tê-lo em meus braços assim perfeitamente para quebrantarem-nos as doze horas.

O vento rebentou pela porta, sacudiu os cercados e as hastes resfriadas do maracujá. Era inverno. Vento, leva-o, vento! Frio, contem-no, frio! Toma alguma providência com esse tempo de ninguém!

Esteve à porta pontualmente: nove. Vinha num casaco escuro de brim, os fios se entrelaçavam cordialmente tal qual apertos de mão; atado numa gravata púrpura, distinta; todo boina e luvas de carpete, nas cores do casaco. Estava belo e sereno feito a lua clara, insistente entre as brumas de inverno; sorria faceira e ele, encantador. Pedi-lhe que entrasse, revi tristemente o centenário e desmoronei-me por dentro, por dentro sempre.

Conversamos naturalmente. Nunca era-nos a mesma coisa, perguntar-lhe o cotidiano me vinha tão mergulhado em novidades que não me continha, de felicidade nos olhos cristalizava. Eram um romance indiano de guerreiros, deuses e nativas - lindas mulheres de cabelos negros e olhos idem -, temperado à canela, cravos e pimenta as aventuras marítimas que ele se dispunha a narrar e as estórias que se me despertavam. E apesar de não haver ligação alguma entre ele e as Índias, gostava de pensar que as laranjas que me trazia do porto exalavam qual romãs.

Era pescador, mas não cheirava a salmão. Pela manhã, exalava sol de cedinho, areia de praia, mar e céu azuis. Ao cair da tarde, banhado e recomposto, cheirava a lírios, a mel de flor silvestre; grave, acetinada e envolvente que é fragrância masculina, um tanto azeda, um tanto doce. Transformava o colo dele em acalanto e me convidava a deitar. Pedido irrecusável o perfume de um homem.

Falei-lhe, neste dia, de meus devaneios indianos e recriei a pedido o cenário de lagos, várzeas, elefantes, cores e olores de incenso em que se avivavam nossas aventuras. Saris, turbantes e tapetes, de repente, nos transportavam da sala mórbida para o ostentoso Taj Mahal muçulmano, construído para a amada, pelo amado. E ele me tomava as mãos.

- Farei um para ti, queres? Verás! Melhor que o do Sultão! – e nos ríamos.

Nos casaríamos segundo os preceitos hinduístas, ao som de mantras, oferecendo juntos no templo uma chama, símbolo de amor e gratidão aos deuses. E me ofertava, as mãos em concha, uma flor de lótus imaginária, não sem seus risos gostosos de encantamento. E naquela gargalhada meu sol. Euforia rebentava-me por dentro, numa certeza de estar onde sempre quisera.

E do sorriso fez-se o pranto, assim de repente. Era riso e, num assomo, soluço morno, contido. Agradeceu-me veemente as carícias que lhe eram cada uma das palavras daquele dia, os desejos de nos sumirmos completamente da monotonice. Deitou-me um olhar pastoso, apertou-me contra o peito num desespero infante e falou do vento. Uma outra vez.

Línguas infantes - gélidas, pálidas - sussurravam à entrada, afogueavam o capim verde e me inclinavam as cercas pros lados no norte. Da terra ao mar, sopravam; da terra firme ao oceano, lambiam; da casa - casa minha, berço meu - ao litoral errante, tangiam. Buscavam-lhe à porteira.

- É tempo já. – olhou-me com olhos de “vou-me”.

E, por um momento, apertou-me o peito a certeza de que não mais veria aqueles olhos, nem os de “eis-me” tampouco os de adeus.

Doze horas.

Um comentário:

  1. nossa, bem bonito e bem suave, não conhecia esse seu lado romântico(um romântico-sensual, pra falar a verdade). bonito :)

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