quinta-feira, 24 de julho de 2008

A sombra

Um tombo surdo. Bumbo. Do outro lado.

A unha encarniçada parou: cavoucava o chão. Os pelos eriçaram dum medo. Depois, os dedos imundos do pé voltaram a se contrair como a horas, movimento de alicate, a catar o palito de fósforos imundo do chão idem. Onde estaria ele agora que o fio de sol, que entra por misericórdia pela falha da parede, entardecera? Continuava, entretanto, como se ainda visse. Agarrou alguma coisa: os dedos gordos, pretos, arrastaram, levando às mãos o objeto delgado. Um riso fraco de contentamento. Afastou a poeira num sopro e o perdeu novamente. Dedos imundos do pé direito foram buscá-lo desta vez, que o esquerdo tem nós de cãibra. Se houve rancor da perda... retesou-se em algum lugar, na cara não. As mãos roliças não sustentavam mais, os dedos inchados não sentiam; as veias obstruídas pelo aperto das algemas. Assim, quando lhe punha o palito entre as bolas intumescidas, não lhe agarrava prontamente, era como dá-lo a um bicho de cascos. Era bicho já. Os braços negros, duas ampulhetas: grossos no antebraço, finos nos pulsos e a grossura novamente. Quando o fio de sol amanhecia, erguia-os no limite das correntes, tentar adivinhar que tons traziam seus indicadores.

Um dia: “Roxos... e os... os seus?”

Nada em resposta, mas falou. Falou. Arfara diversas vezes até balir a cor e a cor cortara as ataduras que lhe puseram na boca antes de ir à catacumba, era como se lhe tivessem costurado os beiços e a cor – bendita cor - rompido a linha imunda, pêlo de animal sebento. “Roxos”, libertou num esforço, mas não à toa: ouvira da cela contígua. Assim fora: o balido, depois a sombra. Uma silhueta mais tarde, mais escura que a escuridão. Foi como se existisse sol por um instante, discriminou o outro: sim, alguém estava ali e o fizera pergunta.

“Seus dedos... – arfando, arfando - que cor trazem... s... seus... dedos?”

Mas que longa longa frase! Que longo longo discurso identificara. Jamais poderia crer que seria capaz ainda de entender idioma agora que os grilhões lhe tinham comido as peles dos pulsos e tornozelos e que o silêncio, também faminto, comera palavras, todas elas, calaram há muito. Agora revia-se: a palavra era um espelho diante dele, única coisa que lhe diagnosticava não era bicho, pois que entendia e falava. Entendia e falava. Ergueria sua condição da imundície se o corpo obeso não podia: arfou, arfou, remexeu-se dolorosamente, ilinhou-se nos grilhões, desesperado com a constatação tão óbvia, especial: era preciso responder.

“H....” - guturais.

“Rr...rro...” – um canivete decepando a cabeça das costuras mofadas.

“Ro..xosss” – finalmente.

Estrondou-lhe nos ouvidos, era um leão rugindo ao meio-dia, rompendo a sesta da savana. Era uma macumba brandindo num terreiro, sacudindo das tumbas os velhos negros: os tambores lhe tocaram nos pulmões e a multidão lhe subiu pela traquéia, batucou as cordas vocais e explodiu pela boca.

“Roxos dedos tenho!” - Bendito seja Oxum lhe desdobrara a língua.

Continua......

3 comentários:

  1. huuum... modéstia sua dizer que "Não escreve" bem, mas se tu afirmas que "tenta", espero que não páres de tentar. Li todo o primeiro texto, gostei muito e lerei os demais. Vou catar tesouros. Vou adicionar você ao "depósito" do meu blog.
    E não, não, acredito que pessoalmente não te conheço. Mas que feliz coincidência descobrir que tu tens blogs e que escreves tão oportunamente bem. Estou lendo "Infância" de Graciliano Ramos. A forma como tu escreves lembrou-me ele.=]

    Obrigada pela visita!! Volte sempre que quiser. Eu voltarei mais vezes. À propósito, espero que não demore a continuação da história.=D

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  2. Começo interessante, magricela. Lembra V de Vingança, naquela parte em que ele relembra a época em que ficou preso e conheceu a Valerie.

    Gostei do jeito como você explorou a rehumanização dele através da palavra. As descrições iniciais estão um pouco nebulosas, mas acabou dando certo, porque a pessoa que tá lendo meio que se sente com a percepção tão nebulosa quanto a do preso. Provavelmente foi essa a sua intenção ^^"

    Aguardo o resto do conto!

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