terça-feira, 8 de julho de 2008

As profissionais de Walquiria

Trajava chita quando caminhava repetidamente pela esquina. Chita, fita no cabelo, bolsinha de palha e, certas vezes, até livros. Madalena professorinha. Lá pelas dez, chegava Rochelly, enquanto Suelen arribava para os lados da Beira mar no Corola verde-oliva. Todo santo (?) dia o mesmo Corola. Era magra, Rochelly, loira tingida, peitos fartos, curtas saias, mas já era velha. E sabia disso. Chorava no motel desdentado de janelas quando os homens saiam. A bendita impressão que lhe disseram, sentiria, quando chegasse a hora. Não sustentava mais do jeito que o homem quisesse e já se cansara de fingir como antes: com tanta graça gemia, Rochelly, que os homens não podiam não acreditar. Nunca achou que por falta de gozo apanharia, como as outras. “Bicho nojento, caprichoso” resmungavam segurando o rosto em brasa “se quisesse que eu sentisse, pagasse mais!” e outras tantas davam razão, enquanto Rochelly zombava num canto. Naquela noite, apanhou. E ainda que tivesse tentado fingir que fazia parte do lance, que fora por prazer, o italiano meteu-lhe a mão na cara por insatisfação. A puta não deu no couro (donde já se viu). “Caprichoso”, consolou-se sozinha, ainda arreganhada a contar os vinténs. Deu-lhe menos o gingo, e – fez questão – em reais.

No ponto, a negra Maria Clara abordava mais um. Essa criara confusão quando resolveu assentar-se por aquelas bandas. Achegou-se com uma conversa de que tivessem respeito com ela porque não era daquelas “sem-vergonhiças”, estava ali pra ler a sorte dos clientes, seu esoterismo, sim, era honesto, coisa de família, aprendera com a mãe. Não demorou muito pras moças de dona Walquiria subirem as escadas do puteiro às pressas, contar pra ela que a “nega macumbeira entrava no carro dos cliente, e depois, na outra rua, dava, sim!”. Angélica, nova e afogueada, se adiantou no meio da gritaria: “Madrinha, ela com essas vissagem de lê mão, faz boquete de graça, dentro do carro mermo e oferece o resto! Rouba o ponto da senhora sem dá um tostão!”, a danada até tinha razão, mas levou um tapa entre os beiços por ter falado nome feio. Em casa de Walquiria não se falam vulgaridades.

Na mesma noite, a cafetina rija, bem maquiada, dos lábios encarnados, metida em jérsei roxo-desejo, chamou Maria Clara pras conversas. Dava roupa, dava quarto, dava um cantinho da calçada, mas deixasse de desonestidade. E era um carinho pro lado da negra, pois que não tinha nenhuma dessa linhagem na casa. Os clientes mais chegados já reclamavam da falta duma baiana legítima desde a morte de Nazinha. “Tá pouco. Se sinhá soubesse quem sou eu com esses pestes, oferecia muito mais que isso”, um riso safado de dentes muito brancos. Walquiria desenrolou num segundo: deitou-se àquela noite com ela e no outro dia, fez-lhe quase sócia. E a rapariga que achasse ruim, podia ir-se embora, que falta não ia fazer.

Mas a preciosidade não era Maria. Era Madalena. Trajava chita quando caminhava repetidamente pela porta, agora, ao menos, não tão nervosa como antigamente. Gostava era da praça, caminhava por entre os bancos, enquanto as outras se empunhavam à esquina, ainda que logo Wal lhe chamasse para dentro. Madalena não competia, pois que nunca se aceitou naquela circunstância. Walquiria revoltou-se de início, mas depois, fez pouco caso. Importante era o dinheiro no fim da função, e isso sempre chegava. Enquanto as outras eram chapinha, escova, peruca, tintura, Madalena era cabelos cacheados, longos, naturais, laço de fita; as outras, saias curtas, peitos e regos à mostra, Madalena manguinhas, babados, estava mais para uma sertanejinha do Juazeiro pronta para o batizado. E de lá viera mesmo, mas para estudar. Formou-se na capital e não conseguiu sustentar-se. Foi por fome que se deu de comer e a primeira vez gozou um gozo dolorido, repetindo alto: sô professora, sô professora; eu não sou disso, o senhor me respeite pelo amor de Deus, que eu sou é professora!”. O maldito aquentou-se com a gritaria, tapou-lhe a boca, virou-lhe de bruços e lhe calou de choro. Sete dias sem falar. Nem gemido, nem resfolego, nada. E não virava de bruços de jeito maneira. Walquiria rejeitou-lhe, que não tinha serventia mulher daquele jeito: não queria vestir as roupas das outras, não fazia os gostos do cliente, era cheia de pudores. Mandou procurar o Pastor Matias, que por ali andava vez em quando, talvez tivesse pra ela lugar mais bem parecido. “O pirão de Wal é quente e insosso, minha filha, gente fresca não prova dele, não”. Mas deu-se uns dias e haja os homens aparecerem atrás da professorinha. Só queriam se fosse ela, veja só, lembrava a deles, do “culegial”.

Depois de nove dias de aperreio, a cafetina mandou chamar Madalena: estava mais magra já. Logicamente, Wal contou-lhe outra história, vestiu-se de azul-solidária e disse que não podia mais dormir pensando na precisão da bichinha. Tadinha de Madá. Mas a espilicute não caiu. Disse certeira que já sabia dos reclames da clientela e que, se Wal quisesse, tinha de ser do jeito da puta. Foi assim que a professorinha ficou de bibelô: era de chita, de fita no cabelo, dentro da casa, nada de rodar de carro, e com ela, meu filho, só papai-mamãe.

Duas e meia em ponto no relógio comprido da outra praça, não longe dali. O Corola estaciona desembarcando Suelen, mas, dessa vez, Walquiria esperava na porta, vestindo preto-sangue.

“Cadê dinheiro?”

A sulista aperreou-se, tirou das calças umas notas encarnadas.

“Quero é dinheiro, Suelen, não é dez reais, não!”

“Mas é dinheiro, madrinha, me deixe entrar, que estou cansada.”

“Se dez reais fosse dinheiro, excomungada...” agarrada nas patacas da branquela “ ...cê tava trabalhando em supermercado, tava num caixa, não tava aqui vendendo os fundos, não!”

“Hoje não foi bom, madrinha, amanhã melhora...”

“Melhora, sim. ” Afastou-se lentamente deixando a moça à vontade.

Nova noite. O centro secava e os policiais a cavalo se deslocavam sutilmente para a outra borda da praça, fingindo não ver o início da função. A lâmpada do poste era feito um estroboscópio. Trocar pra quê? Se ilumina o que se deve dar a conhecer, o que já está lá e já é de conhecimento pra quem interessa, melhor que fique escondido. Assim é mais fácil pra quem quer fingir que não existe. Na frente do puteiro, nunca houve luz nos postes menores: os policiais as retiravam, quando não, os clientes pediam.

Naquela noite, quando o Corola verde-oliva pousou rente à sarjeta, quem lhe esperava era Walquiria, em marron amargo. Mandou baixar o vidro.

“Você tem mulher?”

“Não achei que isso interessasse.”

“Acho bom responder. Quantas putas você tem?”

Silêncio. Poste a piscar. Depois, “Deito com quem eu quiser.”

“ Perdeu a conta? E esposa, quantas cê tem?”

“Uma só.”

“Uma só. Vai sustentar Suelen? Vai deixar sua esposa pra sustentar Suelen? Vai levar pra casa, apresentar pra sua família? Então deixe de apaixonar a menina pra pagar menos. Não sei onde mais cê fode, mas aqui é tabelado. E ela não tá aqui hoje, não. Botei pra ir atrás de quem tenha, chega de dar pra liso.”

Pelas quatro, Suelen voltou exausta. Em beira de praia, não há decência. Trazia os bolsos recheados, as pernas e o abdômen doloridos, um baseado no canto da boca. O puteiro um puro silêncio. Estranho.

“Ele veio?”

“E foi-se embora.” Walquiria trancou-se com ela no quarto. Tinha companhia.

“Quê que eles tão fazendo aqui?”

Wal puxou-lhe o dinheiro dos bolsos e contou com dificuldade, pediu ao polícia que fizesse menos barulho “impossível se concentrar assim, Rogério! Homens, pelo amor de Deus, que zoada!” e que não estragassem o rosto da moça. 30 minutos, uma hora, hora e meia.

“Chegô! Ela trabalha amanhã!”

Saíram, levando cada um, um tanto.

“Mulher minha não se apega. Se der de graça lá fora, vai dar aqui dentro, e pra quem eu quiser. Amanhã ce vai pra praia de novo, hoje foi bem melhor. Se lave e ajeite esse quarto.”

Vestia verde-oliva.

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